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O gaiteiro Joaquim das Eiras, da Freiria, Torres Vedras, c. 1960. Fotografia de Manuel Mucharreira.

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Tradições Musicais da Estremadura
Aerofones do Ciclo Pastoril
A Gaita de Foles

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Por José Alberto Sardinha,
Excerto de textos do Livro "Tradições Musicais da Estremadura"


A flauta, a palheta e a gaita-de-foles pertencem ao chamado ciclo pastoril, por provirem de materiais que, no campo, estão ao alcance directo do homem que se dedica à pastorícia: as canas, os paus das árvores, as folhagens, as peles de animais. Tempos houve em que as sociedades estavam estreitamente ligadas à pastorícia e à terra e em que, portanto, os instrumentos musicais eram fabricados com esses materiais. Ainda nos nossos dias, não há muitos anos, algumas comunidades rurais do interior de Portugal podiam ser consideradas representantes desse tipo de economia e de vida, possuindo e praticando música exclusivamente com tais instrumentos tradicionais.

São instrumentos de fabrico artesanal, a partir dos materiais disponíveis na Natureza, cuja construção se foi aperfeiçoando ao longo dos séculos através de experimentações sucessivas, transmitindo-se os conhecimentos de construção e afinação, empiricamente adquiridos, por tradição oral para a geração seguinte.

A gaita-de-foles (...) é um instrumento de grande antiguidade consistindo num odre de pele de chibo, que tem por função ser depósito de ar, ao qual estão ligados: o «bocal», para onde sopra o tocador; o «ponteiro», que tem, na ligação com o odre, uma dupla palheta fixa que vibra e produz o som agudo à passagem do ar; e o «roncão», comprido tubo de vários segmentos, que possui, na união de dois destes, uma palheta de caniço com lamela, produzindo, dado o seu comprimento, um som grave à passagem do ar.

Depois de soprar o ar para o reservatório, o tocador pressiona o saco com o braço esquerdo contra o peito, forçando-o a sair pelo ponteiro e pelo roncão. No ponteiro, que possui orifícios para serem jogados com os dedos, faz o tocador a melodia, ao passo que o ronco, afinado na oitava inferior à tónica, faz a nota sustentada ou pedal. Encontrámos na Estremadura gaitas afinadas nas tonalidades de si e de dó. As primeiras seriam originariamente em si bemol, mas a afinação terá subido por virtude da palheta do ponteiro.

O povo estremenho dá às partes da gaita os nomes de «ponteiro» e de «ronco», sobre cuja afinação ouvimos o Tio Chico, tocador da Atalaia, Lourinhã, dizer: «O baixo tem de dar com o canto».

O gaiteiro António dos Santos Nobre, de Fonte da Vaca, Palmela, usa a seguinte nomenclatura para designar as partes essenciais do instrumento: «ronca», «ponteiro», «boquilha» e «saco». No ponteiro é colocada a «palheta» e na ronca o «palhão», referindo-se às componentes produtoras do som. António das Eiras, da Freiria, Torres Vedras, utiliza as seguintes designações: ronca, ponteiro, soprete e fole. Etelvino Ferraria, de Almoinha, Sesimbra, usa exactamente a mesma nomenclatura e Mário Quaresma, gaiteiro de Maçã, Sesimbra, só difere na designação da ronca, a que chama «vara da gaita».

Os três gaiteiros mais antigos da Estremadura cistagana no arraial da Senhora dos Remédios, em 1989 (António Malaquias, Chico da Atalaia e Joaquim Roque).

Abílio Santos, da Atalaia, Lourinhã, chama «clarinete» ao ponteiro. A respectiva palheta comprava-a antigamente em Lisboa (no Santos Beirão ou no Custódio Cardoso Pereira – «custavam sete e quinhentos») e a última comprou-a ao Roque (gaiteiro de Torres Vedras), que lha dispensou. «A palheta da ronca é a gente que a faz, duma cana dum foguete, ou dum caniço do canavial». Emídio Malaquias, do Casalinho das Oliveiras, Lourinhã, utiliza a nomenclatura mais corrente: «ponteiro», «ronca» e «assoprar».

Noutros tempos, os foles eram todos em pele de cabra, que era necessário untar, para amolecer, em azeite e vinho. Por volta de 1970 começaram a aparecer os foles em borracha, que substituíram quase por completo as peles, sendo este fenómeno comum além e aquém-Tejo. O gaiteiro Emídio Malaquias, do Casalinho das Oliveiras, por exemplo, continua a usar a pele de cabra, que comprou na Alemanha, onde esteve emigrado. Actualmente verifica-se uma tendência para o retorno aos foles de pele, incentivada por Joaquim António Silva (Caldas da Rainha), que tem fornecido indicações para construção. O gaiteiro Joaquim Roque também já tem um fole de pele.

Dada a sua persistência actual em regiões de povoamento céltico (Irlanda, Escócia, Inglaterra, Norte da Península Ibérica, sobretudo Galiza), tem conhecido acolhimento em certos meios a tese que atribui aos celtas a origem da gaita-de-foles. «Caro Baroja, porém, atentando na existência de gaita-de-foles nos povos pastoris de todo o mundo, nas estepes da Ásia como nas ilhas do Mediterrâneo, afirma a sua ascendência pastoril, mas não céltica». Sibyl Marcuse considera-a seguramente um instrumento oriental, provavelmente do Próximo Oriente, o mesmo pensando Anthony Baines, que lhe atribui origens urbanas no Próximo Oriente por volta dos princípios da Era Cristã.

A sua antiguidade, essa, é inquestionável, havendo mesmo povos que lhe atribuem significado mágico, tal como aliás também acontece com a flauta. Esse sentido maravilhoso que o povo atribui a estes aerofones parece provir do facto, em si extraordinário, de nascerem sons tão melodiosos do simples sopro de ar. O carácter mágico que o povo atribui à música em geral aparece materializado na gaita-de-foles, instrumento produtor de sons por excelência.

É conhecida a lenda galega sobre a origem da Via Láctea: em noite de Natal, desceu do Céu à Terra um Anjo para colher uma amostra do leite de Nossa Senhora e, de regresso ao Paraíso, quando passava sobre o firmamento galego, ouviu um toque de gaita-de-foles que tanto o encantou e distraiu, que ele deixou espalhar pelo universo o leite que trazia, assim se formando a Via Láctea.

António Nobre, Joaquim Godinho e António Bernardes, «gaiteiros» de Fonte da Vaca, Palmela, 1988.

A um gaiteiro português, Joaquim Roque, da Cadriceira, Torres Vedras, ouvimos nós a seguinte expressão: «É a música mais velha do mundo, é esta! [ostenta a gaita]. Foi formada por Deus Nosso Senhor!». Depois, contou a história do gaiteiro que, voltando sozinho de um arraial, noite dentro, foi perseguido pelos lobos. Para os entreter, foi-lhes dando bocados de pão, que os lobos iam comendo, mas continuando a segui-lo. Quando se lhe acabou o pão, em desespero, a única coisa de que o bom do gaiteiro se lembrou foi tocar a gaita e logo, como que por magia, os lobos se afastaram, «não se sabe se por medo, se por encanto da música» – rematou o nosso gaiteiro. Na mesa em que nos encontrávamos, gerou-se silêncio, como que em reverência às capacidades extra-musicais da gaita-de-foles, logo interrompido pelo Tio Alberto, flautista da Colaria, na altura em nossa companhia, que esclareceu peremptório, confirmando a história: «Isso foi no Alentejo!».

O mesmo Roque, cada vez que se fala do decréscimo do número de gaiteiros, faz ressaltar a importância da gaita-de-foles dizendo que é o único instrumento autorizado a entrar na igreja ao lado do sacerdote e a tocar, do altar-mor, durante os ofícios litúrgicos. E, com efeito, junto do povo, esta circunstância ajuda em muito a uma certa aura sagrada ou sobrenatural, de que desfruta a gaita-de-foles.

Ernesto Veiga de Oliveira, op. cit., assinala que já no século XI a gaita-de-foles aparece representada num capitel existente na Galiza e os outros monumentos iconográficos a que faz referência são elucidativos sobre a popularidade do instrumento entre os portugueses, desde o século XIV. Durante a Idade Média foi, com efeito, instrumento muito tocado, talvez mesmo o mais popular de todos, sendo essencialmente preferido por jograis e menestréis. É nas mãos destes que aparece representado no códice escorialense das cantigas de Santa Maria.

Existe sobre a gaita-de-foles uma notícia concreta do ano de 1394: na cidade do Porto foram pagas 150 libras a «Pedraffonso, gayteiro», porque «tangeo andando nas matynadas dos bautismos do Iffante dom Anrique». Trata-se de recibo dos pagamentos que a Câmara Municipal do Porto fez a esse gaiteiro e a outros músicos que andaram tangendo (não se sabe que outros instrumentos) nas matinadas do baptismo do futuro «Navegador». (...)

Peditório para a Festa de Nossa Senhora da Glória, em Casal do Frade, Caldas da Rainha, 1998. Gaiteiros da nova geração: Joaquim António Silva e Sérgio Pereira.

A ligação da gaita-de-foles aos pastores ainda hoje é detectável em Portugal. Como nos disse um dia um gaiteiro trasmontano, «todo o bom gaiteiro foi pastor». Já acima referimos que A. da Cunha Sotto Mayor informava em meados do século passado que o saloio, quando miúdo, tinha o hábito de tocar «gaita de cana» (flauta) enquanto guardava ovelhas e vacas. E, com efeito, verificámos, em todos os locais do país onde gravámos e inquirimos gaiteiros, que a esmagadora maioria destes foram pastores na sua infância e juventude, e que começaram por tocar flauta. Foi assim com quatro dos gaiteiros que entrevistámos na Estremadura cistagana: Joaquim Roque, da Cadriceira, Torres Vedras, António Malaquias, da Ribeira de Palheiros, Lourinhã, António das Eiras, da Freiria, Torres Vedras, e Francisco Severino, da Atalaia, Lourinhã; e, na Estremadura transtagana, também com António dos Santos Nobre, gaiteiro em Fonte da Vaca, Palmela (este guardava porcos).

Sabe-se também, por outro lado, que nos autos populares de Natal e em celebrações dramatizadas na própria Missa do Galo, que ainda no decorrer deste século muito se representaram nas nossas aldeias, os pastores que iam visitar o Menino Deus e entregar-lhe as suas oferendas, geralmente cordeirinhos que depositavam no Presépio (e que revertiam a favor do pároco e do sacristão), surgiam invariavelmente tocando uma gaita-de-foles, mesmo dentro da igreja. A gaita surge aqui como um verdadeiro ex-libris ou atributo dos pastores, pois era sempre ostentada por um deles, ainda que ninguém a tocasse. (...)

Contrariamente ao que sucede aquém-Tejo, onde a gaita-de-foles ocorre quase sempre sozinha (à excepção de um Círio à Senhora da Peninha, Sintra, onde o gaiteiro Joaquim Roque foi acompanhado por uma caixa de rufo e dos gaiteiros da mais recente geração), ali, no distrito de Setúbal, aparece sempre acompanhada por caixa e bombo e também, ultimamente, por clarinete e por vezes até saxofone (que António Nobre juntou recentemente ao conjunto com a finalidade de animar os bailes populares da região).

Beijando a bandeira de Nossa Senhora da Glória depois de dar a esmola, em Casal do Frade, Caldas da Rainha, 1998. Gaiteiro: Sérgio Pereira.

Em 1976, vimos um destes conjuntos instrumentais da «Outra Banda», em que pontificavam duas gaitas-de-foles, acompanhar os festejos religiosos a Santo Onofre, em Vermoeira, Azueira, Mafra – vide fotografia –, constituído precisamente pelos referidos irmãos Costa, dos Olhos de Água, Palmela, que por vezes se reúnem para tocar em conjunto, outras vezes tocam separadamente, tanto na região transtagana, como «nos saloios», como eles expressamente costumam dizer. O gaiteiro Mário Quaresma, de Maçã, Sesimbra, conta-nos que quando era novo costumava acompanhar o seu pai, este tocando gaita-de-foles e ele à caixa.

Noutros tempos, outros gaiteiros, entretanto falecidos, garantiam as mesmas funções hoje exercidas por estes (bailes, festas, círios e arraiais): era o Romão Bernardes, falecido nos finais da década de 70, o Zé da Costa, que morava no Poceirão e o Zé da Gaita, do Terrim, bem como os pais dos referidos Mário Quaresma (Maçã, Sesimbra) e Etelvino Ferraria (embora este, o filho, viva actualmente em Almoinha, o pai era da Cotovia, onde «assistia»).

A importância da gaita-de-foles em todo o país estremenho era enorme e estendia-se aos mais variados aspectos da vida, assim religiosa como profana, das aldeias e vilas e até cidades da província e também da capital. Da sua relevante função nos peditórios em geral e nos das festas do Espírito Santo em particular. (...)

O gaiteiro Joaquim das Eiras, da Freiria, Torres Vedras, c. 1960. Fotografia de Manuel Mucharreira.

Por outro lado, uma das mais antigas funções a que aparece associada a gaita-de-foles é a festiva. Desde os bailes de rua, no largo da aldeia, em dia de festa ou simplesmente ao domingo, desde os bailes que ocorriam nas «descarameladas do milho», até aos bailes dos círios e arraiais, passando pelas cegadas do Entrudo, maxime o cortejo do Carnaval de Torres, a gaita-de-foles estava – e ainda está – presente na vida lúdica do povo estremenho. Além dos depoimentos que colhemos, é de assinalar as informações que nos fornece, relativamente a Alcobaça, Vieira Natividade455 que inclui pautas com «trechos de arraial», para lá das gravuras e quadros já mencionados, de que se destacam os que representam bailes populares à gaita-de-foles em Cacilhas e em Lisboa, Junqueira, nos princípios do século XIX. No Arquivo Paroquial de Peniche, que tivemos oportunidade de consultar, são mencionados os gaiteiros nos arraiais do século XVIII.

Leite de Vasconcelos, narrando uma festa em Óbidos, 1914, em que era costume fazer-se uma grande fogueira, com lenha de pinho e rolheiros de vides, remata: «E, com o toque da gaita de foles e harmónios, divertem-se à volta da fogueira».

O mesmo Leite de Vasconcelos reproduz notícias de jornal de 1902 e 1903 que descrevem bailes populares na romaria de Santo Amaro, a Alcântara, e na festa de S. Vicente, ambas em Lisboa, ao som de gaitas-de-foles tocadas por imigrados galegos. Como se sabe, havia na capital uma grande colónia de galegos que serviram a cidade e os seus habitantes sobretudo na dura profissão de aguadeiros. A romaria de Santo Amaro, por ser santo de grande devoção na Galiza, era sempre muito concorrida de galegos e era mesmo conhecida como a «festa dos galegos». Os lisboetas admiravam-nos a dançar ao som da gaita, caixa e bombo. A notícia relativa à festa de S. Vicente até identifica os naturais de Tui que constituíam o grupo musical composto por tocadores de gaita-de-foles, tambor e castanholas.

Para além da função lúdica, a gaita-de-foles assume na Estremadura um importante papel cerimonial, de que, desde logo, se destaca o acompanhamento de peditórios, os mais variados, mas todos eles ligados a assuntos piedosos: reportamo-nos de novo às gravuras antigas que já citámos, nomeadamente as que representam o gaiteiro no peditório para a Sopa dos Pobres e para a Festa do Espírito Santo. Em geral, todas as festividades religiosas, designadamente como já dissemos os círios, incluíam – e incluem ainda – um peditório organizado pelo Juiz e pelos festeiros que, encabeçado pela «bandeira» ou pendão do santo festejado e ao som da gaita-de-foles, percorre, desde umas semanas antes da festa, as ruas da aldeia bem como as localidades vizinhas e, às vezes, até longínquas (como foi o caso, de termos encontrado o Círio de Almeirinho Clemente a Santa Quitéria de Meca fazendo o peditório em plena vila da Ericeira).

 

 

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