Antologia
Música Tradicional da Madeira
As Rotas geográficas da MPM
Por Victor Sardinha
. . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . .Tudo começou
no mais antigo povoado madeirense, a modesta zona de Santa Maria do Calhau, que se
estendia por uma rua do mesmo nome unindo e solidificando os laços entre as gentes.
Numa primeira fase a partilha da terra e da água foi feita em partes iguais.
Depois, com o advento do comércio do açúcar e o domínio dos mercadores sobre todos os
outros, deu-se um afastamento decisivo. De um lado, os que se dedicavam aos ofícios e ao
trabalho da terra, do outro, os que auferiam rendimentos e privilégios.
A raiz da nossa música popular está no berço daqueles que foram obrigados a
viver do trabalho braçal; gente sem condição definida sujeita e vinculada ao longo
braço da colonia, entregue a um destino pouco auspicioso.
Muitos ficaram, passando aos seus herdeiros as correntes de uma dependência
social que nalguns casos, relatados na própia História madeirense, atingiram laivos de
escravatura.
Porto do Funchal, Madeira |
Para quem não suportava os cânones da colonia e a rígida estrutura
social da Madeira dos capitães donatários, partir era uma boa solução. Sendo a cidade
do Funchal um porto obrigatório no cruzamento norte sul e com o tempo, um ponto de
referência no comércio de alto mar, foi fácil estabelecer contacto com outras culturas
europeias. Durante o século XVI com italianos e flamengos, a partir do século XVII com
ingleses, holandeses e outros. Estas experiências trouxeram coisas novas aos costumes e
tradições da Madeira e Porto Santo.
A primeira cidade europeia, construída em pleno oceano Atlântico gerou na sua
gente um fácil convívio com os passantes incentivando a emigração para outras
paragens. O Atlântico lusófono e mais tarde as américas foram os destinos mais
concorridos.
Num primeiro momento a música, os instrumentos e as práticas musicais variaram
consoante a origem da população da ilha. Com o passar do tempo, a adopção de uns
instrumentos em detrimento de outros marcou decisivamente o modo, a expressão musical e
vocal dos nascidos na Madeira.
Romaria vinda dos Canhas ao arraial do Senhor Bom Jesus da Ponta Delgada.
Nas comunidades de emigrantes as romarias testemunham a ligação à terra natal |
Perdem-se no tempo algumas formas musicais, que também como é lógico,
surgiram com a evolução de outros géneros mais antigos. A Mourisca, o Charamba, o
Bailinho, os Cantos Religiosos e as Cantigas de Roda definiram-se progressivamente e não
de um modo único. A Chamarrita é outro dos exemplos que tem coexistido sobre várias
tipologias e que como é sabido reflecte as realidades insulares da Madeira e dos Açores.
As variantes orais, ainda hoje disponíveis nas recolhas efectuadas pela
Madeira, levam-nos a ponderar e a não classificar de qualquer maneira o património
musical. A música popular também evolui e é necessário conhecer as variantes, para
depois, encontrar, ou pelo menos idealizar um modo mais original e verdadeiro da sua
expressão colectiva.
Quem partia levava a música, a trova e os olhos cheios de lágrimas de saudade,
que na maior parte dos casos começava logo que o barco se fazia ao mar. O braguinha, o
rajão e a viola de arame foram companheiros de viagem e o meio através do qual era
possível.
Brasil, Angola, Cabo Verde, São Tomé são alguns dos destinos onde para além
de se falar o português, os madeirenses encontraram espaço para começar de novo.
Afirmaram-se na construção de vilas e cidades desbravando terras e influenciando os
povos que encontraram. É de notar que alguns jogos cantados ou cantigas de roda muito
populares na Madeira fazem parte do imaginário cultural do Brasil e de Cabo Verde.
As lenga-lengas, as cantigas de Natal e dos reis bem enraízadas na música
tradicional madeirense são também encontradas com ligeiras modificações no Brasil. O
Historiador e etnógrafo brasileiro José Carlos Rossato faz referência a estas
influências acrescentando ainda a constituição dos músicos e instrumentos que íam de
casa em casa na véspera de Natal. Viola (arame), violão, pandeiro, reco-reco, chocalho,
triângulo e violino serviam de base musical ao grupo.
A viola de arame intruduzida no Brasil rural, ainda hoje acompanha o cantar da terra. O
"som" resultante da afinação em Sol destaca-se logo ao ouvido. Da presença do
braguinha no Hawaii já bem documentada em estudos publicados, quer em Portugal quer nos
E.U.A., não há dúvidas, nem se levantam questões quanto às famílias madeirenses que
o levaram para as ilhas do pacífico. É também provável e plausível que o cavaquinho
brasileiro e o cavaquinho cabo verdiano, pelas suas características e afinação tenham
mais em comum com o braguinha madeirense do que com o cavaquinho usado em Portugal
Continental.
Falar pois nas rotas geográficas da música popular madeirense, é assumir
também esta vertente da lusofonia Atlântica e toda a riqueza que daí advém.
Foi com esse objectivo que em 1997 surgiu o registo sonoro "Terras da Vera
Cruz". Captar as práticas musicais madeirenses e integrá-las na lusofonia
Atlântica foi o propósito dos músicos envolvidos nas sessões de gravação. O projecto
assumiu uma viagem pelos caminhos do Atlântico, convergindo pontos de partida e de
chegada, latitudes e longitudes numa expressão diferenciada mas sempre segurando em pano
de fundo, a música popular e tradicional madeirense.
Em "Vera Cruz" captou-se ambientes e sonoridades de Cabo Verde e do
Brasil dos anos 20. No "Ladrão do Negro Melro" envolveu-se a Madeira e o Brasil
rural tecendo uma mancha ritmo-harmónica com a viola de arame ao jeito nordestino.
Noutros temas foi possível enquadrar os ritmos e toques do norte de Portugal ou evocar o
sentir e a música açoreana. Em "Rabaçal" pôs-se em diálogo o rajão, a
viola de arame e o violino instrumentos usados pelo nosso povo nos despiques e romarias.
Mas ainda há muito por fazer... Em princípio as recolhas na região estão
concluídas, havendo apenas alguns aspectos a registar. Urge fazer o caminho inverso e
procurar, fora da Madeira, pedaços da nossa tradição e da nossa música.
Refazer as rotas da emigração madeirense, as do Atlântico, mas também o
Hawaii, a Venezuela e o Curaçau, a Africa do Sul e por fim a Austrália são metas
fundamentais para elaborar um inventário e posterior sistematização do património
cultural deste arquipélago. Repensar as "Semanas da Madeira" pelo mundo será
um primeiro passo. Durante muito tempo a expressão da nossa música popular e tradicional
ficou entregue aos grupos folclóricos, o que é manifestamente insuficiente.
Levar até às comunidades as danças e cantares, na maior parte dos casos já
esperados e conhecidos, não trouxe nada de novo a quem vive longe da região. Tão pouco
contribuíu para um conhecimento profundo dessas comunidades. A atitude deverá mudar. É
urgente recolher nesses recantos do mundo cantares tradicionais, que aqui já se perderam.
Registar em Audio e Vídeo essas práticas musicais e voltar com testemunhos vivos da alma
insular, que também existe, para lá da Ponta de São Lourenço.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . .
Victor Sardinha
Vítor Sérgio Dias Sardinha nasceu no Funchal em 1961. Fez os seus estudos
musicais no Conservatório de Música da Madeira e fundou a primeira escola de música
ligeira na Madeira (projecto-ensino de música ligeira) em 1984. Fundou e dirigiu a
primeira tuna de instrumentos tradicionais madeirenses para crianças do primeiro ciclo
básico (1987). Colaborou com grupos como os ALMMA e Xarabanda e em 1997 lançou o seu
disco a solo, 'Terras da Vera Cruz'. Na área da investigação musical tem desenvolvido
uma pesquisa sobre a História das Bandas Filarmónicas Madeirenses com vista à edição
de um livro.
. . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . .