Antologia
Música Tradicional da Madeira
Instrumentos populares madeirenses
Por Manuel Morais
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. . . . . . . . . . .Do riquíssimo
instrumentário usado na música popular madeirense destacam-se sobretudo os cordofones de
mão e muito particularmente os de caixa em forma de oito, nomeadamente o Machete (também
conhecido, entre outras designações, por Braguinha), o Rajão, a Viola de arame e a
Viola francesa (ou de seis cordas simples).
De todos estes instrumentos o Machete é provavelmente o mais popular e o seu uso
encontra-se documentado desde a primeira metade do século XIX.
Segundo o importante testemunho do inglês Robert White, que visitou a ilha da
Madeira por volta de 1850, ficamos a saber que: Os habitantes da Madeira gostam
apaixonadamente de música. Os instrumentos mais cumummente usados são o machete, a
"guitarra espanhola" (viola françesa), a guitarra, ou a velha guitarra inglesa,
com sies cordas duplas de metal, e o violino (rebeca).
Machête (Braguinha)
O machete é característico da ilha; é uma pequena viola, com quatro cordas de
tripa que são afinadas em terceiras, com a excepção das duas mais graves, que têm um
intervalo de uma quarta. Este instrumento é usado pelos camponeses para acompanhar a voz
e a dança. A música vulgar consiste numa sucessão de simples acordes; mas, nas mãos de
um tocador dotado, o machete é capaz de muito mais agradáveis harmonias, e o estrangeiro
é algumas vezes agradavelmente surpreendido a ouvir a música em moda nas nossas salas de
baile tocadas com considerável efeito num instrumento que parece tão insignificante. Um
ou dois camponeses podem frequentemente ser vistos no campo iludindo o cansaço da jornada
tocando nos seus instrumentos favoritos. (Robert White, Madeira its Climate and Scenery,
Edimburg, 1857, cap. VI, pp. 77-78).
O Machete é um pequeno cordofone de mão, de caixa em forma de oito, usado em Portugal
pelo menos desde o século XVIII e pertencente à família das violas de mão. Braguinha,
Braga, Machete de Braga ou Cavaquinho são os diferentes nomes com que o instrumento é
ainda hoje conhecido na Ilha da Madeira. Este instrumento é montado com quatro cordas
simples afinadas, do grave para o agudo, ré3, sol3, Si3, ré4, cujo tiro de corda é de
cerca de 33,4 cm; nos exemplares mais antigos que chegaram até nós, a escala é rasa com
o tampo sendo dividida por 15 a 17 trastos de metal.
Ainda que o uso deste instrumento se encontre actualmente restrito à música popular
(tanto nesta ilha como no continente), na Madeira encontramos o Machete no século XIX
tocando um repertório erudito do qual faziam parte não só as danças de salão em voga
nesta época (marchas, valsas, quadrilhas, polcas, etc.), bem como difíceis variações
instrumentais sobre temas pré-existentes. A recente descoberta de um curioso manuscrito
contendo uma colecção de peças arranjadas para duo de machete e viola francesa
(pertencente ao espólio da associação Recreio Musical União da Mocidade de São Roque,
Funchal) vem deste modo confirmar o testemunho de R. White quando nos afirma, que
"[
] o estrangeiro é algumas vezes agradavelmente surpreendido a ouvir a
música em moda nas nossas salas de baile tocadas com considerável efeito num instrumento
que parece tão insignificante".
Entre os tocadores madeirenses desta época, ressaltam os nomes de Cândido
Drumond de Vasconcelos (fl. 1841-1883; autor das composições do citado manuscrito) bem
como Maria Paula Klingelhöfer Rego (fl. 1883). Já nos finais do século XIX e inícios
do seguinte vamos encontrar este instrumento muito divulgado nas mãos das senhoras da
burguesia madeirense tocando nos saraus de música, ao lado de outros instrumentos como o
rajão, o bandolim, a viola francesa e até o banjo (vide: Colecção Vicentes
Photographos, Funchal).
Viola de Arame
Depois do Machete é provavelmente a Viola de arame o instrumento mais usado para
acompanhar as canções e as danças populares na Ilha da Madeira. Este cordofone de mão
é actualmente montado com cinco ordens de cordas duplas (normalmente a prima é usada
simples), se bem que em instrumentos mais antigos o seu cravelhal apresente 12 cravelhas
dorsais, o que obrigava a armá-la com as mesmas cinco ordens de cordas mas as duas ordens
mais graves terão de ser triplas.
Instrumentos deste tipo conhecem-se desde a segunda metade do século XVIII, não só
representados nos célebres presépios do Mestre Machado de Castro, bem como em alguns
instrumentos que chegaram até nós em estado original (Lisboa, Museu Nacional Etnologia;
Oxford, Ashmoleam Museum) e no único método que conhecemos da autoria de Manoel da
Paixão Ribeiro, Nova Arte de Viola, Coimbra, 1789. Neste tratado, o seu autor indica que
"Tambem se póde encordoar a viola com arame, [
] tomaremos para as terceiras
hum carrinho de nº 5 amarelo; para as segundas hum de nº 8 branco; e este mesmo servirá
para as contras [duas das ordens da 4ª corda; o bordão será de prata]: e para as primas
hum de nº 9, tambem branco. Os bordões serão os mesmos assima referidos ["hum
bordão de prata, que seja delgado", para a 4ª e um mais grosso para a 5ª]. (Nova
Arte de Viola, regra III, pp. 5-6).
De qualquer modo a Viola madeirense denominada de arame, em virtude do seu encordoamento
ser em maioria feito de fios de latão ou aço, faz uso de uma afinação muito diferente
da que se praticava nos instrumentos congéneros em uso no continente. As suas cinco
ordens de cordas (sejam duplas ou triplas) afinavam sobre o acorde de sol M, do grave para
o agudo: sol1 (ou si1), ré2, sol2, si2, ré3. A sua escala é vulgarmente dividida por
trastos metálicos podendo o seu número variar entre 14 e 17.
Se compararmos a afinação e a disposição das cordas da Viola de arame com as do
Machete, verificamos que os dois instrumentos são afinados sobre o acorde de sol M. Para
todos os efeitos, o Machete ( ou a Braguinha) é um soprano (ou tiple) da Viola de arame,
sendo pois com esta designação ("Diskanteguitarre mit 4 Saitem und 17
Messingbünden"; "treble guitar or Machete") que os organólogos alemães e
ingleses se lhe referem.
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Viola Francesa (Viola de 6) - Exemplar com mais de 100 anos |
Viola Francesa (Viola de 6)
Quanto à Viola francesa (ou de seis cordas simples) o seu uso em Portugal remonta
pelo menos ao segundo quartel do século XIX. Aliás é sobre esta designação que Robert
White cita este instrumento - "Spanish guitar (viola françesa)" - para a
distinguir do seu homónio, mas um pouco mais pequeno, armado com cinco ordens de cordas
duplas (ou triplas), independente da sua afinação e disposição das suas cordas. Esta
designação mantém-se entre nós ao longo de todo o século XIX. É só na viragem para
o século XX que se começa simplesmente a chamá-la de Violão, ainda que em alguns
métodos impressos no continente se mantenha as duas designações. De qualquer modo, os
vocábulos Guitarra e Viola são usados indistintamente já nesta época para designar um
cordofone de mão de caixa em forma de oito, montado com seis cordas simples ("três
cordas de tripa" e "três bordões cuja fieira é enrolada em fios de
seda"), afinadas, do grave para o agudo: mi1, lá1, ré2, sol2, si2, mi3. Este
instrumento na música popular da Madeira tem essencialmente a função de acompanhamento,
ainda que o seu uso se torne cada vez mais raro particularmente nos grupos mais arcáicos.
Rajão
Deixámos paro o fim o Rajão, instrumento ainda pouco estudado mas que à medida
que o vamos conhecendo se revela um dos mais interessantes senão o mais interessante dos
cordofones de mão que se faz uso na Madeira. É provavelmente o único instrumento
verdadeiramente de criação madeirense ou pelo menos o que apresenta características
mais arcaícas que cristalizaram nesta ilha, pelo menos desde o século XVII. Para todos
os efeitos é como os anteriores um cordofone de mão de caixa em forma de oito; as suas
dimensões encontram-se entre o Machete e a Viola de arame e pertence, como estes, à
grande família das violas de mão. O instrumento é sobretudo acompanhador do canto e da
dança, desconhecendo-se o seu uso em estilho ponteado.
O Rajão, tal como o conhecemos hoje em dia, arma com 5 cordas simples mas, diferentemente
das actuais violas de mão, usa a chamada afinação reentrante, isto é, a sua corda mais
grave não é a 5ª - como é hábito nos instrumentos montados com cinco cordas - mas sim
a 3ª, sendo a sua afinação a seguinte (do grave para o agudo): ré3, sol3, ré3, mi3,
lá3. A afinação reentrante é típica da viola de mão seiscentista (ainda que as
primeiras indicações da prática desta afinação remontem aos finais do séc. XVI),
montada com cinco ordens de cordas duplas; o instrumento foi sobretudo usado pelos
tangedores das escolas italianas e francesas e nalguns casos isolados pela espanhola.
Provavelmente o actual Rajão é uma forma popularizada na Ilha da Madeira da "viola
requinta" usada, pelo menos, desde os finais do século XVI. O único exemplar que
chegou até nós é a célebre "viola requinta" construída pelo português
Belchior Diaz, em Lisboa no ano de 1581 (Londres, Royal College of Music) cujas dimensões
se aproximam muito dos rajões construídos ao longo do século XIX.
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Manuel Morais
Manuel Morais é um dos mais conceituados investigadores de musicologia do
nosso país, sendo membro fundador do grupo Segréis de Lisboa, especializado em música
antiga e professor efectivo do Conservatório Nacional em Lisboa. Em 1997 efectuou um
trabalho de investigação sobre os cordofones tradicionais da Madeira.
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