| Rebetika
O Bouzouki, o Haxixe e a Cidade
Por Ruben de Carvalho
Jornal PúblicoComo
frequentemente sucede nas formas de cultura popular urbana, na rebetika, a música surgida
em torno dos portos de Pireu e Salónica, até a própria designação é incerta - como
aliás acontece com o muito português fado. |
Segundo a historiadora Gail Holst «é
provável que o termo 'rembet', ou 'rebet', seja uma derivação da palavra turca que
significa fora-da-lei ou marginal. A música rebetika é originalmente território de
marginais, independentemente do que quer que depois se tenha tornado.»
O elemento mais estritamente grego da rebetika liga-se, de facto, ao mundo prisional,
resultando da adaptação da música rural (em geral designado por demotiki) às
condições da população urbana vinda do campo e procurando trabalho na cidade. Embora o
bouzouki se tenha transformado no instrumento mais característico da rebetika
(proveniente embora da grande família balcânica das tambouras), a verdade é que a
elementar baglama, que ainda hoje está para o bouzouki como a viola para a guitarra no
fado, resulta da invenção de um instrumento que acompanhasse as canções dos presos,
mas que tivesse simplicidade e dimensões que permitissem construi-la e escondê-la em
prisões onde eram proibidas.
Uma segunda influência é mais cosmopolita e, na sua diferença, mais estimulante: a
ligação da Grécia à Ásia Menor, no século XIX e XX, correspondente a uma complexa
mescla de comuns tradições helénicas com o quotidiano turco islamita na Ásia Menor e
cristão ortodoxo na Grécia.
Ainda citando Gail Holst, «uma das características mais comuns da então sociedade
marginal e da prisão era o consumo de haxixe. Nas cidades turcas, o haxixe era legal e
utilizado correntemente; na Grécia, leis contra seu consumo e venda foram promulgadas em
1890, mas não rigorosamente aplicadas pelo menos durante os trinta anos seguintes. As
pequenas 'lojas' onde o haxixe era consumido, normalmente utilizando narguilés, ou
cachimbos de água, eram chamadas tekés (...). A música aí interpretada já era, no
virar do século, uma forma de rebetika. Baglamas e bouzoukis tornavam-se os instrumentos
standard e os temas das canções eram os da prisão, o submundo e o haxixe.»
Em 1922, na sequência do chamado «incidente de Esmirna», uma absurda guerra grego-turca
alimentada pelas grandes potências europeias, verificou-se uma troca obrigatória de
populações entre a Turquia e a Grécia, baseada exclusivamente nas crenças religiosas:
os cristãos ortodoxos turcos foram banidos para a Grécia e os muçulmanos gregos banidos
para a Turquia. O afluxo de refugiados chegados à Grécia (pertencendo a famílias que
há gerações viviam na Ásia Menor e nem grego falavam) traduziu-se em cerca de um
milhão de pessoas, cerca de 25% da população grega da época, que se amontoaram em
barracas e construções precárias nas imediações dos pontos de chegada, nomeadamente
Pireu e Salónica.
Neste universo de pobreza e saudade, a componente da vivência turca encontrou,
naturalmente, não a cultura grega dominante, mas a das classes populares que coabitavam
os mesmos universos. Assim, ao longo dos anos 20 e 30, nasce a rebetika como hoje a
conhecemos, fruto do que vinha do submundo grego oitocentista somado à cultura musical
arábica dos cafés das grandes metrópoles da Ásia Menor.
Como sucede com outras manifestações musicais populares urbanas, a rebetika não surgiu
nem viveu apenas como expressão musical: constituiu uma forma de sociabilidade expressa
em padrões dos mais diversos, da forma de vestir ao calão próprio, dos comportamentos e
posturas aos consumos, nos quais se incluiu ao longo daquelas décadas o do haxixe,
reforçado pela triste situação dos emigrados e pelas próprias tradições da sociedade
turca.
Após vicissitudes várias, seria necessário chegar ao final da II Guerra e à
afirmação de talentos musicais como Vassili Tsitsanis e Sotiria Bellou para que, já na
década de 50, a rebetika se libertasse do estigma da marginalidade e do haxixe. Um
percurso comum, afinal, a todas as expressões musicais dos universos da cultura popular
das grandes cidades, sejam o tango dos portos de Buenos Aires ou Montevideo, os blues de
New Orleans e Chicago, a java dos faubourgs parisienses, o flamenco de Cádiz ou Huelva -
e o fado de Alfama, Mouraria ou Alcântara.
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