Comunicação feita no XXIX Congresso Luso-Espanhol (Lisboa, 31 de
Março a 4 de Abril de 1970). Jorge
Dias (1970)
Esta comunicação não é a obra de um
especialista do folclore musical, mas o depoimento de um etnólogo, que nasceu nos
primeiros anos deste século e teve a dita de percorrer todo o País, conhecendo a vida do
campo desde muito cedo, observando muitas das transformações que se foram operando no
decorrer dos últimos decénios.
Até 1922, o Entre Douro e Minho vivia numa festa
permanente. Embora a alimentação da maioria fosse pobre em proteínas e noutros
princípios energéticos, como consideravam isso natural e ignoravam que noutras regiões
podia haver uma alimentação mais rica, não conheciam sentimentos de frustração e
brotava do povo rural uma alegria franca e irreprimível. Aos domingos e dias de festa
dançava-se nos largos e terreiros, por toda a parte, e durante o trabalho o canto animava
constantemente as lides do campo.
No Baixo Minho, nos concelhos de Braga e Guimaráes, era
rara a casa rural, onde não houvesse uma viola ou um cavaquinho e, por vezes, uma
harmónica, a que mais tarde vieram a chamar concertina. Espontaneamente, bastava que um começasse a tocar, para
que rapidamente viessem vizinhos de quintas próximas e formava-se uma festada. As
raparigas apareciam com os seus trajas garridos e passavam
a tarde de domingo a dançar e a cantar ao som dos instrumentos. Em muitos trabalhos de
campo colectivos, quando rogavam os
vizinhos e os amigos para virem ajudar a uma sacha, ou malha de centeio, ou às vindimas,
era sabido que tudo terminava numa festa.
Se nas quintas grandes estavam os senhorios (os fidalgos) que davam vinho à discrição, então
os caseiros rogavam os melhores tocadores e cantadeiras da vizinhança. As raparigas,
além das festas, onde cantavam em grupo com os rapazes ou cantavam individualmente ao
desafio, também se juntavam com frequência para certos trabalhos femininos, como as
espadeladas e as estopadas, e então ouviam-se os belos corais minhotos a duas e três
vozes. Nas esfolhadas também se juntava muita gente. Às vezes, lá vinham os
instrumentos e dançava-se um pouco pela noite fora, sobretudo nas noites de luar.
Além dos domingos e dias de festa locais, havia as grandes
romarias minhotas. Das mais célebres, lembramos, um pouco ao acaso, a Senhora da Agonia
em Viana do Castelo, a das Cruzes em Barcelos, o São Bento da Porta Aberta, lá para os
lados do Gerês, o S. Gualter em Guimarães, a Peregrinação à Penha (Guimarães), Nossa
Senhora da Graça em Celorico de Basto, S. Lourenço da Montaria na Serra da Arga e
muitíssimas outras. A todas elas acorriam numerosos romeiros, vindos, por vezes, de
terras distantes e que calcorreavam estradas e caminhos, a cantar e a tocar, dançando
mesmo grandes pedaços dos trajectos.
As mulheres e raparigas levavam os merendeiros à cabeça,
o vinho ia, por vezes, em pequenos barris com asa de ferro, em cabaças, ou em grandes
chifres, que os homens transportavam a tiracolo. Nas mãos dos homens não faltavam nunca
os varapaus de lodo, para qualquer refrega que surgisse. As mulheres usavam os seus trajos
garridos, muito variados, conforme as regiões do Minho de onde provinham. Os homens, de
chapéu braguês, de aba larga, colete de costas de cor, em geral vermelho, jaqueta de
alamares ao ombro, camisa de linho bordado, com o nome do dono bordado a vermelho, em
certas regiões a azul. Na cinta, uma faixa preta de várias voltas segurava as calças.
Seria sem sentido tentar dar uma lista das romarias do
Entre Douro e Minho, tantas elas eram, incluindo os locais que só atraíam os das terras
próximas. Mas não devemos esquecer que descendo de Braga e Guimarães para Sudeste, na
região de Amarante, a viola de corações animava as festas, sobretudo as de S. Gonçalo,
que se difundiu para o Brasil, onde se mantém vivaz. Continuando para o Douro ia-se dar
à famosa região de Barqueiros, célebre pela sua chula bárbara, violenta e de
esfuziante alegria. O próprio Douro Litoral, apesar da influência da cidade do Porto,
não escapava à exuberância que trasbordava do Minho.
As romarias eram cheias de colorido e de alegria. O Senhor
da Pedra (perto de Miramar) era visitado por numerosíssimas rusgas vindas das aldeias
próximas. Nesse tempo, Ramalde e Gondomar eram inteiramente rurais, e dentro da cidade
actual havia ainda muitas quintas. Mas a própria classe popular citadina participava nas
romarias dos arredores formando também pequenas rusgas ou grupos festivos, com pequenos
bombos, pandeiretas, ferrinhos, por vezes violas e cavaquinhos e reques-reques. Logo ao
romper do dia, começavam a sair da cidade, indo numerosíssimos a pé, outros em
charabã, ao som dos bombos e dos demais instrumentos. A ponte de D. Maria chegava a
abanar de maneira impressionante com a massa de romeiros que a atravessava continuamente.
As romarias do Senhor de Matosinhos e da Senhora da Hora eram igualmente frequentadas por
gentes dos arredores e da cidade do Porto. E tudo cantava, formando-se nos terreiros
grupos que dançavam.
Em Trás-os-Montes, o povoamento concentrado, as pequenas
povoações distantes umas das outras, apresentavam uma feição diferente. Aos domingos e
dias de festa também se dançava a «jota» ao som da gaita-de-foles e dos tambores,
sobretudo nos planaltos de Este. Os adufes e os cantos eram nalgumas regiões dominantes.
No distrito de Bragança havia muitas canções de trabalho, sobretudo no tempo das
malhadas, e nas segadas do centeio. Os romances tradicionais eram ainda cantados, a solo
ou em grupos.
Pelo Natal cantavam as loas ao Deus Menino, por vezes
acompanhados pela gaita. Era frequente cantarem à volta da grande fogueira do Natal,
acesa em frente do adro da igreja, depois da Missa do Galo. No distrito de Bragança havia
uma festa ritual, no ciclo do Inverno, em que usavam máscaras, as chamadas festas dos
rapazes, que em certas fases eram, por
vezes, acompanhadas de música. Os
célebres fiandeiros, em que tocavam o adufe (pandeiro) e cantavam, sobretudo as mulheres,
eram festas tocantes pela alegria simples e pela pureza das canções.
Era costume em Trás-os-Montes anunciar as festas por uma
ronda, que, ao romper do dia, passava ao longo das ruas, com instrumentos locais ou com
uma pequena orquestra contratada as alvoradas. Pelo S. João e outros Santos do
ciclo do verão eram frequentes as festas, nas próprias povoações, a que podiam acorrer
vizinhos de aldeias próximas e ao som do tambor e da gaita-de-foles tudo dançava.
As romarias eram mais raras e os romeiros, que não eram de
aldeias vizinhas, vinham montados em cavalos e burros. Algumas festas, como Nossa Senhora
do Naso, em Terras de Miranda, S. Pedra da Silva e Argozelo eram muito concorridas. Além
dos pauliteiros que apareciam logo de manhã nas rondas a pedir esmola para o Santo,
dançava-se nos grandes terreiros durante o dia e de noite à luz das fogueiras. Não eram
festas movimentadas, nem trasbordantes de alegria como as do Minho, mas havia nelas uma
intensidade lúdica, de uma força interior impressionante.
Na região do Alto Douro, a época animada, era a das
vindimas. Então eram necessários muitos braços, e formavam-se rogas nos planaltos e
serras de Trás-os-Montes e da Beira, que desciam ao vale do Douro. Estes grupos de gente
nova vinham menos pela paga do que pela brincadeira e pelas uvas que comiam. Muitos eram
de regiões, onde não havia uvas, nem mesmo fruta de qualquer espécie, como os das
aldeias altas da serra de Montemuro. As rogas iam-se formando conforme combinações
feitas com antecipação e já levavam, em geral, o seu destino. Pelo caminho também era
frequente cantarem e às vezes transportavam o seu tambor e, em certas regiões ferrinhos
e concertina. Os de Barqueiros, com a sua orquestra estrídula, com rabecas de braço
curto, animavam as vindimas das grandes quintas de perto da Régua.
Para o Sul do Douro, nas regiões serranas, cantava-se e
dançava-se menos, mas em Pias, perto de Porto Antigo, havia lindos corais de mulheres que
se ouviam às tardes nas margens do rio Bestança. A Senhora da Lapa era visitada por
muitos romeiros, mas não havia grande animação festiva. Só em Lamego, na Nossa Senhora
dos Remédios, entre os numerosos grupos que acorriam de diferentes regiões, havia alguns
que cantavam e dançavam, mas nada que se comparasse com as romarias para o norte do
Douro. Nesta área eram frequentes as «bandas», como as da Gralheira e Maqueija, na
Serra de Montemuro, que iam a cavalo, tocar às festas para que eram convidados.
Na Beira Litoral ouvia-se a gaita-de-foles, acompanhada
pelos grandes bombos dos Zés-Pereiras, a animar as solenidades. Até na cidade de Coimbra
era frequente eles colaborarem em algumas festas de estudantes. A viola toeira também se
usava para acompanhar o canto.
A grande região musical de entre Douro e Tejo era a Beira
Baixa, com as suas célebres romarias, como a Senhora dos Altos Céus, na Lousa, a Senhora
do Almurtão, a Senhora da Póvoa e as chamadas festas do Castelo em Monsanto. Aí era o
mundo maravilhoso dos coros e dos cantos acompanhados, ou não, a adufe. Era música
lindíssima de tipo cerimonial, de grande pureza e de raiz mais antiga. Embora se
mantivesse, aqui e ali, a viola que acompanhava o canto profano. No Ribatejo imperava o
fandango, vivo, colorido e movimentado.
O Alentejo tinha épocas do ano, em que desciam os
«ratinhos» da Beira e subiam os algarvios para trabalharem nas fainas dos campos, e
formavam grupos em que reinava a animação desses jovens que vinham ganhar uns escudos
às terras do pão. Nos períodos de descanso, após as refeições servidas no campo, era
frequente cantaram e dançarem, enquanto os jovens alentejanos dançavam bailes de roda.
No Este alentejano, como por exemplo, em Barrancos, tocava
o tamborileiro nos peditórios para a festa da vila. Havia também grandes
romarias, como a Senhora de Guadalupe, perto de Serpa, onde se juntava muita gente. Mas
nada tinham de comum com as romarias do Norte, onde o mais importante era a música e a
dança. Porém, no campo da música, os corais masculinos alentejanos, eram uma das
expressões musicais mais belas de todo o País. Estes corais pode dizer-se que estavam
incluídos numa área que se pode grosseiramente designar por um rectângulo imperfeito,
incluído entre os concelhos de Cuba, Moura, Mértola e Castro Verde.
Nas noites de luar, no Verão, os homens em grupos, os
braços sobre os ombros uns dos outros, formando um círculo, outras vezes em linha, e a
caminhar lentamente pelos amplos caminhos ou estradas, cantavam, e as suas vozes enchiam a
noite de uma magia, que só pode compreender quem teve a dita de os ouvir. Ao fim de um
dia de trabalho duro na ceifa, aqueles homens libertavam-se do peso da vida pelo canto. A
par deste canto de tipo cerimonial, também existia a viola campaniça no Alentejo, para
acompanhar o canto individual.
No Algarve imperava o corridinho, vivo e animado. Também
se usava o cavaquinho.
Com o progresso das técnicas foi-se operando uma grande
transformação nestas formas de expressão lúdica, na música vocal, ou instrumental e
na dança.
Até então, cada área cultural, embora não estivesse
inteiramente segregada do resto do País, vivia num relativo isolamento. Os transportes
não tradicionais, quando existiam, eram caros para economias de subsistência. Os que
emigravam ou procuravam trabalho nas cidades, como as então chamadas «criadas de
servir», embora fossem agentes de transformação, não produziam alterações profundas
ou bruscas. Até uma certa época, o fado de Lisboa ou o fado balada de Coimbra, não
chegavam praticamente às áreas rurais. Eram puros fenómenos citadinos. Mas aos poucos,
com a facilidade dos transportes, a maior mobilidade das pessoas, e, sobretudo, a
reprodução da música por meio de máquinas foi exercendo uma acção difusora enorme,
que começa a alterar os padrões locais.
O gramofone, cuja patente Edison registou em 1878 sob o
nome de «fonógrafo», foi-se aperfeiçoando muito no primeiro quartel do séc. XX. Por volta de 1925, eram frequentes os gramofones
de corda, transportáveis, que as pessoas abastadas levavam para as casas de campo, mas a
sua acção era muito limitada. Porém, quando se começaram a utilizar nas festas
pequenos motores geradores de electricidade, com gira discos e altifalantes, os resultados
foram fulminantes. Foi um autêntico golpe de morte no folclore musical de certas
regiões. Por volta de 1942, assisti a uma romaria minhota, julgo que em Ponte de Lima,
onde as festadas que chegavam das aldeias próximas a tocar e a cantar, eram surpreendidas
pelos sons estrídulos do altifalante que lhes abafava completamente os instrumentos e as
vozes, e os obrigava a desistir. Ao som dessas músicas variadas e desconhecidas também
era impossível dançar.
O deslumbramento pela novidade e o espírito de
concorrência, fazia com que os organizadores das festas, tratassem sempre de contratar
uma dessas máquinas, mais de fazer barulho do que música, e que já estavam montadas em
furgonetas. A difusão destas máquinas foi tão rápida que até em Rio de Onor, na festa
de S. João em 1945, levaram uma em cima de um carro de bois. Só depois compreenderam que
não se tinham divertido como de costume e, nos anos seguintes, desistiram. Porém a
noção de prestígio e modernidade acabam sempre por se impor. Aos poucos, em certos
lugares, ao som dos discos, começaram a imitar danças citadinas. Só nas regiões mais
afastadas dos centros foram sobrevivendo as tradições musicais.
Como o comportamento da gente nova se fosse transformando
com o tempo, alguns bispos começaram a querer proibir que as festas profanas estivessem
associadas às festas religiosas. A tradição de ir à festa religiosa ou à romaria
estava, desde há séculos, associada a uma noção de festividade que também tinha os
seus aspectos lúdicos; e isso fez com que as festas populares tomassem também uma nova
feição. Mais tarde começou a própria guarda republicana a exigir licenças para fazer
festas ou bailes, certamente para melhor poderem controlar desmandos, mas foi mais um
elemento que ajudou à extinção das festas populares, onde se conservava certo tipo de
folclore musical.
A Emissora Nacional de Radiodifusão, já tinha começado a
partir de 1933, a difundir programas musicais que mais tarde incluíam também fados e
música folclórica. A música
popular, que até então estava relacionada com uma certa região, foi-se começando a
apresentar como uma ementa variada, onde se oferecia de tudo. Porém a sua acção era
limitada, porque eram muitas as áreas, onde não havia electricidade e o rádio não
entrava a não ser em poucas casas abastadas, que usavam pilhas ou geradores eléctricos.
A partir de Janeiro de 1950 foram lançados no mercado os primeiros transístores de
aplicação industrial que de início não deram resultado, mas que se vieram rapidamente
a aperfeiçoar mediante novos processos. Aparelhos transportáveis e baratos contribuíram
poderosamente para que os cantares regionais fossem profundamente afectados e baralhados.
Mas para os folcloristas ainda restavam as pessoas idosas, anteriores às inovações e
fiéis depositários de uma tradição que se tornava arqueológica se é permitida
a expressão neste caso.
Em 7 de Março de 1957 organiza-se a Rádio Televisão
Portuguesa. Este facto coincidiu com maior abundância e distribuição de electricidade
por várias regiões do País. Muitos viram na televisão uma fonte de lucro e começaram
a abrir-se cafés pelas vilas e aldeias maiores, onde a televisão servia de chamariz,
roubando o público das tabernas. A televisão oferece também programas de folclore
musical. Em todas as regiões do País, ouvem-se as canções dos outros, e vê-se como
eles dançam.
Ao mesmo tempo que, a pouco e pouco, o que era vivo e vinha
do passado começa a ficar ameaçado, nasce em muitos a saudade por essas formas de
expressão musical, sobretudo nos que, esclarecidos pelo que se tinha passado em países
tecnologicamente mais adiantados, pressentiam que entre nós iria acontecer o mesmo.
Começam então vários a clamar que era necessário salvar o folclore nacional. A
Emissora Nacional fez uma campanha de recolha em fita gravada, dirigida por Armando Leça.
Outros procuraram registá-la por escrito, há que falar em Lopes Graça e Michel
Giacometti fizeram-se alguns cancioneiros. O Departamento de Música da Fundação Gulbenkian, criou
uma secção de Etno-Musicologia e tentou enviar musicólogos para o campo fazer estudos e
gravações. Lutou com falta de técnicos preparados que dispusessem de tempo (Virgílio Pereira, que já tinha feito várias recolhas
importantes de música escrita, subsidiado pela Junta do Douro Litoral, fez abundantes
gravações na Beira a expensas da Fundação Gulbenkian. Ainda hoje continuam outros a
fazer essa recolha com a preocupação de salvar o que ainda existe nalgumas regiões do
País.).
Encarregou também o Dr. Ernesto Veiga de Oliveira de
fazer uma recolha de instrumentos musicais populares e o seu estudo, o que ele fez ajudado
por Benjamim Enes Pereira, escrevendo em seguida um livro magnífico, em que ao
conhecimento directo dos instrumentos populares portugueses se junta uma vastíssima
erudição.
Muito antes destes factos apontados, as mesmas razões que
levaram uns a tentar salvar a música, levaram outros a tentar preservar a música e a
dança, criando grupos de jovens que se conservassem fiéis à tradição da sua terra.
Parece que o primeiro foi o estudioso Abel Viana que, em 1933, organizou o rancho de
Carreço. A esta tentativa séria e
bem intencionada seguiram-se outras, nem sempre animadas do mesmo espírito. Surgiram
grupos obedecendo aos mais variados critérios. Muitas vezes, um senhor importante da
terra, movido por zelo bairrista ou por autêntico apreço pelos valores regionais,
organizava o seu rancho. Alguns, onde já nada restava do passado, inventaram eles
próprios o seu repertório, desde o trajo fantasioso, até à música e à dança.
Começaram a fazer-se cortejos folclóricos, concursos,
exibições nacionais e internacionais e, aos poucos, até os melhores foram perdendo o
sentido da verdade e da pureza. Às vezes, a necessidade de encher um programa, obrigava
um grupo que dançava muito bem determinada dança, a ter de inventar ou adoptar outras,
pois o público quer variedade. Por sua vez, os empresários têm as suas exigências, de
acordo com o que eles pensam ser o gosto do público. Os concursos, com prémios,
obrigavam aqueles que perdiam a tentar imitar os que tinham ganho, acelerando os ritmos ou
fazendo passos e piruetas de mau gosto.
No trajo aparecem coisas horríveis e ridículas, como usar
canastras pequenas presas à rodilha na cabeça. Por vezes as raparigas deitam vermelhão
nos lábios e nas faces e entram no estrado com a mão na cinta, em atitude semelhante à
das antigas revistas baratas, cantando uma marcha. É certo que, no meio disto tudo, há
quem se esforce por salvar o mais possível, mas ninguém pode lutar contra as condições
sociais criadas pelas técnicas e pela industrialização.
A emigração veio agravar o estado de coisas, quer dos
ranchos, quer do que ainda existia, por si próprio. Um pequeno grupo coral familiar de
Barcelos, que em 1964 causava sensação pelo domínio e jogo de vozes, emigrou para
França e lá se foi. No Alentejo, o êxodo para Lisboa e arredores faz com que os grupos
se desarticulem. Homens dotados de vozes próprias para certos solos, indispensáveis ao
conjunto coral, abandonam a terra, e o grupo não encontra quem o substitua e perde-se a
tradição. Dizem que é hoje mais fácil ouvir um grupo coral alentejano formado pelos
trabalhadores que vivem na área de Algés, do que no Alentejo. Certamente é exagero! O
certo é que o público se contenta em ir à «Cozinha Alentejan a» ou ao restaurante
«Folclore», para se deleitar com aquilo a que há quem chame folclore. Não creio que
seja possível manter vivo o que era uma manifestação de vida funcional que vai sendo
substituída por outra, cujas funções são diferentes. Como pode haver cantares de
malhadores quando a malha se faz com a debulhadora mecânica; como pode haver cantos de
ceifeiros com as ceifeiras mecânicas.
A avidez do lucro, consequência da industrialização,
também contribui para acabar com inúmeras tradições. Até há cerca de 2 ou 3 anos, o elemento principal das celebrações do S.
João, no Porto, era o alho-porro: naquela noite, a população inteira da cidade
empunhava o alho-porro, com que esfregava a cara de quem lhe apetecia, sem que isso
suscitasse qualquer reparo. Por uma hábil manobra comercial dos fabricantes de
plásticos, que exploram a inconsciência das massas, esse inofensivo alho-porro foi
destronado por uns horríveis e agressivos marteletes de plástico, sem qualquer graça,
que se aproveitam da licença tradicional daquela celebração para acabarem com o
que ela tinha de essencial.
Muitos cientistas usam hoje a palavra folklorismus e fakelore, para
exprimir o subproduto adulterado daquilo que foi uma expressão pura dos povos, quando
viviam a sua vida tradicional de isolamento e criação própria.
O progresso técnico tem de prosseguir a sua marcha, porque
ele é uma das características típicas da adaptação activa do homem à natureza. Mas
é evidente que será errado pensar que progredir tecnicamente significa sacrificar tudo
aquilo que pode dar beleza à vida e alegria aos homens. Simplesmente não sabemos ainda,
nesta grande mutação da história do homem, quais os caminhos novos que se hão-de abrir
perante os vindouros.
Há pelo menos em nossos dias curiosas tentativas de
procurar novas orientações. Na aldeia de Pias, uma das maiores do Alentejo, a Missa do
Galo foi acompanhada a música «pop», no Natal de 1969. Dizia o jornal que «depois de,
durante várias horas, terem ardido quatro toneladas de lenha numa imensa fogueira, no largo da igreja, iniciou-se, à meia-noite, a
celebração da tradicional «missa do galo». De ambos os lados do altar, postaram-se
filas de jovens, que cantaram a missa em ritmo moderno, acompanhados pelo conjunto
«Apolo-5», com as suas violas e órgão electrónico.
«A experiência concebida pelo pároco local, padre
Gaudêncio da Silva Fernandes, obtivera prévia autorização do arcebispo-bispo da
diocese.
«Parte da música executada era da autoria do próprio
pastor da freguesia, tendo sido recebida com o maior entusiasmo pela multidão de fiéis
sobretudo pelos mais jovens que afluíram à igreja em número desusado.
«Terminado o ofício, realizou-se a cerimónia da
adoração do Menino, também ao som da música desta vez de canções pelo rancho
coral Os Camponeses de Pias».
O mesmo jornal, em princípios de 1970, traz a seguinte
notícia «Nova forma de participação em cerimónias litúrgicas. Guitarras Eléctricas,
Música Moderna e Ardor Juvenil na Missa Dominical de Paço d'Arcos».
Como se vê, volta a estabelecer-se uma aliança
entre as festas religiosas e os elementos musicais festivos e populares; mas um popular
completamente diferente da antiga tradição!