Uma visão sobre...
O que é a Música Antiga?
Existem basicamente duas definições distintas, mas relacionadas entre si, de
"Música Antiga". A primeira é situada num período
histórico, ou seja, é a música da Idade Média, Renascimento e Barroco. Mesmo sendo uma
definição aparentemente simples, as coisas não são assim tão claras. Por exemplo,
qualquer tentativa de fixar datas para o Barroco é essencialmente arbitrária. Muitas
pessoas preferem "definir" o seu fim em 1750, com a morte de J.S. Bach. É uma
data muito conveniente, mas também rejeita as várias mudanças estilísticas que se
efectuavam naquele tempo, como por exemplo, a emergência dos estilos galante e
pré-clássico em proximidade com o florescimento final do Barroco. Para acrescentar ainda
mais à confusão, enquanto muitas peças podem ser relacionadas estilisticamente a um
certo pensamento estético, isso também não é claramente definido.
A música barroca foi, de certa forma, "desparecendo" gradualmente. Talvez o
factor mais significativo para definir etapas - como "Música Antiga" - é que
elas não tiveram de facto uma tradição contínua, quanto às formas de tocar. Por
outras palavras, um certo tipo de música parou de ser executada depois da "sua
época" e precisou ser revivida nos nossos tempos. Isso acaba por não ser válido
para a música "clássica" de Mozart, Beethoven, etc., já que estes gozaram de
uma tradição contínua de execução. Isto significa que, até certo grau, é essa
revivescência que domina a Música Antiga como um movimento, pelo menos em espírito.
Há coisas, contudo, que não ficam verdadeiramente claras. Por exemplo, compositores do
Barroco tardio como Bach, Handel, Vivaldi, etc. foram retomados relativamente cedo e
portanto têm uma considerável tradição de performance algo independente do actual
movimento de Música Antiga. É interessante observar actualmente um crescente número de
interpretações de Mozart, Beethoven, etc. num contexto de "Música Antiga".
A segunda grande definição de "Música Antiga" relaciona-se com a forma de
interpretação - um assunto um tanto espinhoso - partindo-se do desejo de recriar
(executar) a música de uma época em particular com as sonoridades e os tratos
estilísticos daquela época. Isto envolve muitas conjecturas e depende fundamentalmente
da intuição do músico moderno no topo do trabalho de musicologista.
Essa abordagem reside frequentemente no uso de instrumentos "autênticos"
(instrumentos ou cópias dos instrumentos que foram supostamente usados naquela era e
talvez "intencionado" pelo compositor), técnica vocal do período e novas
questões de tempo e dinâmicas. Enquanto esta abordagem é talvez mais adequada ao caso
da música barroca, torna-se mais polémica à medida que retrocedemos no tempo.
Uma fonte de controvérsia tem sido o papel dos instrumentos durante os
períodos medieval e renascentista. Assim, esta abordagem pode ser aplicada a praticamente
qualquer música. Quando a música tem uma tradição contínua de interpretação, as
suas interpretações representam divergências quanto a esta tradição, baseadas num
novo olhar sobre o contexto original duma composição (instrumentos da época, notas do
compositor, etc.).
Os executantes às vezes versam sobre captar as "intenções
originais" de um compositor, embora sendo um assunto essencialmente psicológico,
intenções que nunca foram totalmente concretas. A partir daí, as decisões residem
largamente na intuição artística do músico moderno, e deveriam ser julgadas pelos seus
próprios méritos musicais.
No caso da música pré-barroca, há poucas alternativas senão concentrar-se em recriar o
mundo sonoro da época, em ordem para mesmo abordar as composições que nos restaram.
Claro, é isso que vários músicos "históricos" acabam por fazer, e
consequentemente revivem um vasto campo de soberbas músicas que estavam efectivamente
perdidas para nós. Este é, provavelmente, o centro da "Música Antiga".
Tem-se comentado ainda que a tentativa de uma interpretação condicente com a
época é realmente um fenômeno tipicamente moderno, e no sentido tautológico isso é
inequivocamente verdade - nós somos a 1ª geração a se dedicar com tanta convicção a
isso. De uma perspectiva mais larga, é também tipicamente moderna a idéia de que as
"intenções do compositor" deveriam importar mais do que um executante
decidisse fazer com a música diante de si. Na verdade, tem sido ironicamente sugerido que
tal abordagem não é de modo algum a intenção do compositor!
Concluindo, pode-se definir "Música Antiga" tanto como a música das
eras medieval, renascentista e barroca (e talvez mais adiante); ou como uma
interpretação musical voltada ao contexto histórico da composição em vista. Estas
duas idéias naturalmente se correlacionam quando consideramos que boa parte da música
medieval e renascentista deve ser abordada através de seu contexto histórico, se estamos
a ter alguma idéia de como fazer isso em primeiro lugar.
Tradução de Early Music FAQ
(Frequently Asked Questions, T. M.McComb, 1º de junho de 95)
por Luiz Pinto Façanha Junior
Da Interpretação da Música Antiga
Quanto mais regredimos na História da Música, mais
traiçoeiro fica o terreno sobre o qual o intérprete deve caminhar. O século XVI e os
séculos anteriores não nos deixaram nada semelhante aos tratados sobre gosto musical e
estilo de interpretação dos séculos XVII e XVIII. Os livros do século XVI sobre
Música tratam ou do ensino dos seus rudimentos, das complexidades da sua notação, das
técnicas de improvisação e, às vezes, de algumas noções de composição, ou então
dos aspectos técnicos de como tocar um instrumento: dedilhado, arcada, sopro. Na verdade,
lidam mais com Teoria Musical do que com Prática Musical.
Mesmo os tratados teóricos vão-se tornando cada vez mais raros à medida que
retrocedemos no tempo, e a distância entre as notas escritas e sua realização em termos
sonoros se torna cada vez maior e menos definida. O estudante de interpretação tende a
apoiar-se, cada vez mais, nas provas fornecidas por fontes não-musicais - pintura,
escultura, poesia, crônicas, histórias - que, por sua própria natureza, não podem
proporcionar um conjunto de dados coerente e contínuo de que ele realmente necessita. Por
isso devemos contar com toda a nossa intuição e sensibilidade para nos aproximarmos, ao
máximo possível, do que era feito na época, respeitando, assim, sonoridades (ambiente
acústico x instrumentos), estilo, compositor e instrumentos.
Quando nos acostumarmos à idéia de que a improvisação de todo o tipo era parte
integrante da execução da Música Antiga, estaremos mais próximos de vê-la em sua
perspectiva histórica correta e seremos mais críticos em relação a muitas opiniões
comumente aceites.