(in "Cultural Atlas of
Africa", Oxford, 1981. pp. 90-93. Tradução e digitalização de Domingos Morais, em
1997.)Gerhard Kubik (1981)
Em sentido restricto, o termo música/dança africana usa-se hoje exclusivamente para as
culturas musicais dos povos africanos a sul do Sahara, incluíndo os povos Khoisan do
sudoeste. Na antiguidade a área cultural da África negra extendia-se muito mais para
norte como podemos constatar em pinturas rupestres no Sahara. As culturas musicais da
África do norte actual são no fundamental diferentes das da África negra, pertencendo a
uma área afro-asiática mais do que a uma área estilística africana. Do mesmo modo, a
música e as danças das comunidades europeias fixadas no sul do continente africano não
se incluem no conceito de música e dança africanas.
Em África, tal como a definimos, existem, citando Alan Lomax, as seguintes
regiões de estilos musicais: Sudão ocidental, Bantu equatorial, Caçadores/recolectores
africanos, Bantu do sul, Bantu do centro, Bantu do norte, Sudão oriental, Costa da
Guiné, Afro-americano, Sudão muçulmano, Etíope, Alto Nilo e Madagascar. A inclusão de
uma região Afro-americana significa que a cultura africana abrange a diáspora africana.
As culturas musicais da costa da Guiné (Yoruba e Fon, por exemplo), da região do
Congo/Angola e com menor expressão do sudeste africano têm extenções em várias partes
do novo mundo. Só recentemente foi possível estabelecer com precisão a ligação de
determinados elementos estilísticos de vários tipos de música afro-americana com
regiões estilísticas localizadas na África negra.
Apesar das diferenças entre as tradições musicais da África do norte e da
África negra, sabemos do intercâmbio histórico e do contacto inter-cultural entre as
duas áreas. O comércio, a escravatura e a colonização islâmica tiveram como resultado
a islamização da música africana em em muitas regiões da África negra, e também um
forte impacto de aspectos musicais da África negra na África do norte e no sul de
Marrocos. O Sudão muçulmano é uma das regiões musicais islamizadas. Na África
oriental as formas musicais de influência árabe ou islâmica encontram-se mesmo no
interior, no sul do Uganda por exemplo, e não apenas ao longo da costa do oceano Índico.
Vários instrumentos musicais introduzidos pelos árabes podem ser encontrados nestas
regiões, sendo o violino de uma corda o exemplo mais visível. No entanto, vastas áreas
da África negra podem-se considerar virtualmente livres da influência árabe ou
islâmica. As escolas tradicionais de circuncisão para rapazes que encontramos a ocidente
da África central, com as suas músicas e danças associadas, foram desenvolvidas
unicamente na África negra e não podem de forma alguma ser relacionadas com práticas
islâmicas.
É actualmente consensual que a música/dança africana de várias regiões do
continente passou por mudanças decisivas ao longo da história. O que hoje se designa por
música tradicional é com toda a probabilidade diferente do que se ouvia há alguns
séculos. Também não se pode considerar a música africana como exclusivamente étnica,
na acepção que é dado a este termo em etnomusicologia. As formas e características
musicais não se encontram rigidamente ligadas a grupos étnicos; de referir ainda a
importância de cada músico, com o seu estilo e criatividade próprias.
Os grupos étnicos foram por sua vez submetidos a um fluxo constante de
influências e características musicais; modas foram trocadas ao longo das fronteiras
étnicas e linguísticas. Quando o likembe, um pequeno lamelofone de caixa de ressonância
oriundo da região da foz do Zaire, começou a ser conhecido ao longo do curso do rio em
finais do século XIX, levado por servos coloniais Lingala, foi rapidamente adoptado por
povos não-Bantus, como os Ngbandi, Gbaya e Azande. A música para likembe, caracterizada
por traços estilísticos dos grupos de língua Bantu da África central, foi pouco a
pouco modificada para se adaptar aos estilos musicais locais. No início do século XX a
área de distribuição do likembe chegava já ao nordeste, ao Uganda, onde foi adoptado
pelos povos Alur, Acholi e Langi. Mais tarde, trabalhadores do norte do Uganda levaram o
instrumento para o sul do país, onde os povos de língua Bantu, Soga e Gwere, o
adoptaram, o que permitiu o aparecimento de vários autores e intérpretes excepcionais.
Na África central ocidental o likembe espalhou-se gradualmente para sul, do Kasai (Zaire)
ao leste de Angola, tendo sido adoptado pelos anos 50 por povos como os !Kung (do grupo
Khoisan) do sudeste de Angola. Este exemplo mostra como a distribuição (de um
instrumento) pode mudar muito rapidamente; os mapas de distribuição apenas são válidos
se baseados em exemplares recolhidos num lapso de tempo relativamente curto, podendo mesmo
assim apresentar imagens fragmentadas e que nos confundem.
Regiões muito afastadas entre si apresentam com frequência traços similiares
ou mesmo idênticos, enquanto áreas contíguas podem apresentar diferenças
estilísticas. A música polifonica dos Baulé, da Costa do Marfim, a três vozes e em
sistema tonal equi-heptatónico está muito próxima, podemos mesmo dizer que é
idêntica, da música vocal dos Ngangela, Chokwe e povos de língua Luvale do leste de
Angola, e como tal reconhecida por informadores das várias culturas referidas. As duas
regiões estão separadas por vários países com formas muito diferentes de canto
polifónico. Outro enigma da história é a presença de estilos de tocar xilofone em
instrumentos idênticos no norte de Moçambique (entre os Makonde e os povos de língua
Makua) e em alguns povos da Costa do Marfim e da Libéria (especialmente os Baulé e os
Kru). O jomolo dos Baulé e a dimbila dos Makonde são instrumentos virtualmente
idênticos.
Teorias difusionistas de vários autores tentaram resolver estes enigmas. Uma
das soluções, proposta por Arthur M. Jones, sugere a presença de colonos indonésios em
certas regiões da África do leste, central e ocidental durante os primeiros séculos da
era cristã, que teriam sido responsáveis pela introdução dos xilofones e de alguns
sistemas tonais e harmónicos (equipentatónico, equiheptatónico e escalas de Pelog). Os
etnohistoriadores tendem por outro lado a destacar a importância da navegação costeira,
em barcos europeus que transportavam trabalhadores escravos ou contratados, como uma causa
para a difusão cultural.
As tentativas para se reconstruir a história da música em África são sempre
especulativas, sem o recurso a fontes históricas. Essas fontes são, de facto, mais
abundantes do que poderiamos esperar, mas devem ser diferenciadas na sua origem interna ou
externa, quer dizer, se provêm dos próprios africanos ou de observadores externos. As
fontes africanas mais importantes e antigas são arqueológicas (objectos de ferro, como
sinos ou placas de lamelofone), pinturas rupestres (como as encontradas em abundância no
Sahara), e objectos de arte mais recentes reunidos por observadores contemporâneos.
Igualmente importante é a evidência derivada das tradições orais.
Entre as mais importantes fontes externas encontramos textos e imagens de
visitantes e viajantes. Os árabes percorreram a costa leste de África a partir do
século X. Alguns documentos dos primeiros europeus a visitar África aguardam ainda uma
análise detalhada por afro-musicologistas conhecedores das regiões musicais que referem.
Um grupo específico de fontes são notações musicais dos últimos séculos. Existem
algumas do século XVIII, mas as do século XIX são as mais ricas. Há que dizer no
entanto que as notações por músicos formados no Ocidente raramente fazem justiça às
qualidades intrínsecas da música africana, dando uma imagem distorcida, dependente da
formação específica de cada observador, acrescida pelos padrões culturais próprios da
notação ocidental. No entanto, estes registos não são completamente inúteis. Embora
não permitam a restituição musical directa, é possível com o recurso a uma análise
cuidada reconstituir, pelo menos aproximadamente, o que o viajante terá ouvido. Foi
possível, por exemplo, interpretar a notação de Carl Mauch (1872) da afinação do
lamelofone mbira dze midzimu que este autor observou junto das ruínas da cidade de
Zimbabwe, comparando-a com as actuais afinações dos mbira da mesma região.
Por vezes, informação sobre a história da música e dança africanas pode ser
obtida indirectamente de fontes latino-americanas. Os povos deportados de África para o
Novo Mundo vieram na sua maioria do interior, trazidos pelos traficantes africanos que
actuavam como intermediários dos traficantes europeus que vinham até à costa. Os
Ovimbundu de Angola, por exemplo, desempenharam esse papel, vendendo prisioneiros de
guerra do leste de Angola aos portugueses. Daí resultou que a música e dança de povos
do interior de Angola e Moçambique era acessível nos séculos XVIII e XIX no Brasil,
numa época em que os observadores europeus ainda não tinham chegado a essas regiões
interiores de África.
A música e dança africanas da actualidade resultam de várias mudanças
históricas: ecológicas, culturais, sociais, religiosas, políticas e muitas outras. A
mudança dos ecosistemas afectou a longo prazo as deslocações dos povos, que provocaram
por sua vez mudanças nas suas manifestações culturais, incluíndo a música e dança.
Com o avanço da seca no Sahara, as populações deslocaram-se para sul. Na Tanzânia, nos
últimos 20 anos, os Maasai apascentam os seus rebanhos cada vez mais a sul e desde 1977
podem ser vistos no território dos Sangu (a leste de Mbeya). Quando as populações
fixadas aceitam os recém-chegados, adoptam com frequência os seus estilos e formas de
música e dança. Daí o estilo coral dos Maasai ter tido uma influência importante na
música vocal dos Gogo da Tanzânia central, como podemos observar nos seus cantos nindo e
msunyunho.
Se há uma característica com validade pan-africana nas culturas africanas no
que se refere à música e dança, são os conceitos e atitudes relacionados com o
movimento. É o movimento que distingue a África negra do resto do mundo. Infelizmente
trata-se de uma área em que a investigação ainda se encontra no início. A
investigação em dança tem sido predominantemente descritiva e no que respeita a África
feita de um ponto de vista Ocidental, sendo os sistemas de notação de dança mais
conhecidos e que se reclamam de aplicabilidade universal (Laban, Benesch e outros)
ferramentas ainda menos adequadas para o registo da estrutura e do sentir dos sistemas
cinéticos africanos que a notação musical Ocidental para a música africana.
Uma diferença básica entre as culturas africanas e europeias no que respeita
à dança é a de nestas o corpo tender a ser usado como um único bloco, enquanto na
África negra os movimentos de dança parecem sair de várias partes do corpo
independentes entre si. Helmut Günter propôs o termo "policêntrico" para
caracterizar as danças africanas e afro-americanas e realçou uma atitude corporal muito
comum que designou por "colapso". Olly Wilson pensa que a ligação mais
importante da America negra com a música africana é o comportamento cinético. De facto,
os estilos de movimento, pelo menos nas suas formas básicas, são os traços mais
persistentes das culturas africanas. Em África, os conceitos e padrões cinéticos são
comuns à música e à dança. Um conhecido guitarrista do Malawi, Daniel Kachamba,
expressou-o da seguinte forma: "os meus dedos dançam nas cordas da minha
guitarra".
Da mesma forma que encontramos mais do que um centro de movimento numa
determinada dança africana, também encontramos algo idêntico na forma de tocar
instrumentos musicais. O músico não produz apenas sons, move também as mãos, dedos e
mesmo a cabeça, ombros, ou pernas, segundo determinados motivos coordenados, durante o
processo de produção musical. A música é assim a totalidade da organização cinética
e é esse um dos motivos porque a música africana não recorre à escrita tradicional, em
contraste com a música ocidental. A ausência de sistemas de notação na música da
África negra não é um defeito; pelo contrário, a ideia de escrever música e
"tocá-la do papel" (tal como um músico ocidental) seria considerada anormal em
culturas musicais onde os aspectos cinéticos estão completamente ligados aos sonoros.
A análise de filmes foi determinante no estudo dos movimentos de dança na África negra,
e muitos investigadores passaram a usar esse método. Dauer propõe uma divisão
geográfica da África negra em várias regiões de estilos de dança, por exemplo, Sudão
ocidental, Sahara, África litoral ocidental, África central Bantu e Bantu do sul; estas
áreas coincidem em parte com as regiões indicadas por Lomax para os estilos vocais
africanos. O reconhecimento de que as danças africanas são "policêntricas" é
baseado na observação de que em diferentes regiões estilísticas, diferentes partes do
corpo são mais utilizadas do que outras. Por exemplo, a ênfase nos movimentos da pelvis
é considerada como um traço característico do estilo de dança do sul do Zaire e de
Angola. Há no entanto muitas intersecções entre as supostas regiões estilísticas. Nas
danças de máscaras do grupo de povos Ngangela, no leste de Angola, por exemplo, há uma
grande diversidade de motivos de movimento em cada comunidade, sendo cada uma identificada
com uma designação local. O motivo a usar está dependente do tipo de máscaras.
Nas danças a solo, com destaque para as danças de máscaras, existem também
movimentos cujo fim é a comunicação com a audiência, incluíndo algumas mensagens em
código. O que inclui não apenas a dança, também pantomima, gestos e certas formas de
andar.
As danças de máscaras têm uma distribuição muito interessante na África
negra. São feitas em contextos sociais muito diferentes e habitualmente com funções
também muito diferentes. São comuns na África ocidental e central, sendo raras no leste
africano e inexistentes no sul de África. Os Makonde, Makua, Ndonde e Chewa são os
principais povos do leste com danças de máscaras e as respectivas associações. Uma das
regiões mais ricas em máscaras são os territórios culturalmente homogéneos
compreendendo quase todo o leste de Angola, o noroeste da Zâmbia e algumas partes do
Zaire. Entre os Chokwe, Luvale, Luchazi, Mbunda, Nkangala, Lwimbi e outros há vários
tipos de máscaras, cada uma específica no aspecto e significado, com um lugar bem
determinado hierarquicamente, movimentos, gestos, pantomima e repertórios específicos.
Muitas máscaras destes povos do leste de Angola representam membros ancestrais das velhas
cortes reais. Reis e membros da família real, os seus oficiais e cortesãos, incluíndo
servos e escravos, ressuscitam no teatro de máscaras.
A organização do movimento na música e dança africanas segue rigidamente certos
princípios de tempo rítmico. Não há comparação com os sistemas rítmicos ocidentais.
Os sistemas de divisão do tempo africanos baseiam-se em, pelo menos, quatro ou cinco
conceitos fundamentais:
1. A presença de uma pulsação de referência mental (não explícita)
consistindo em unidades de pulsação iguais ocorrendo ad infinitum e habitualmente muito
rápidas. Estas pulsações elementares têm por função servirem de quadro de
referência. São duas ou três vezes mais rápidas do que a pulsação ou "tempo
forte" ocidentais.
2. As formas musicais organizam-se de forma a que os motivos e temas se
desenvolvam de acordo com um número regular dessas pulsações elementares, habitualmente
8, 12, 16, 24 ou os seus múltiplos, mais raramente 9, 18 ou 27 pulsações. É o que
designamos por ciclos; os números são designados por fórmulas estruturantes.
3. Muitas destas fórmulas podem ser divididas ou partidas de mais do que uma
maneira, permitindo assim a combinação simultânea de unidades métricas
contraditórias. Por exemplo, o número 12, que é o mais importante em música africana,
pode ser dividido por 2, 3, 4 e 6.
4. Motivos com o mesmo número de pulsações podem ser conjugados entre si de
tal forma que os seus pontos de início se cruzem (ritmos cruzados). Em alguns casos eles
cruzam-se de tal forma que ficam entrelaçados, não havendo duas notas a soar em
simultâneo (combinação entrelaçada).
Em algumas regiões existe um outro conceito de tempo: as designadas frases
rítmicas de referência (time-line patterns). Podemos encontrá-las em regiões habitadas
pelos Kwa e Benue-Congo, sub-grupos do grupo linguístico Niger-Congo. É aqui que se
encontram frases rítmicas de referência em muitos (não todos) géneros de música e
dança. São curtos, habitualmente de uma única nota, de estrutura assimétrica, tocados
num sino, garrafa, ou num tambor agudo, no fuste do tambor ou com palmas. Uma frase
rítmica de referência é o coração estruturante de uma peça musical, algo como a
representação condensada e extremamente concentrada das possibilidades de movimento e
ritmo à disposição dos executantes (músicos ou bailarinos). Cantores, percussionistas
e bailarinos sabem os seus limites quando escutam as batidas do motivo rítmico de
referência, que se repete sem alterações de andamento durante toda a execução. Os
motivos rítmicos de referência são transmitidos do professor ao aluno através de
sílabas ou frases mnemónicas.
Os motivos musicais são habitualmente concebidos como frases verbais nas
culturas africanas. O mesmo é válido para os motivos de movimento. Por exemplo, as
maracas são ensinadas com sílabas como cha-cha-cha-cha ou Ka-cha-ka-cha-ka-cha,
dependendo do motivo que se espera que o aluno toque. Um importante motivo rítmico de
referência para o acompanhamento da música de likembe, no leste de Angola, é ensinado
com a fórmula mnemónica Mu chana cha kapekula (na margem do rio Kapekula). A estrutura
fonética desta mnemónica contém o timbre, ritmo e acentuações que estruturam o motivo
que deve ser tocado.