Michel Giacometti (1982)
Não será neste local que iremos indagar da essência ou
carácter próprio de um património musical de que ainda hoje mal se conhece a vera
feição estética e a exacta dimensão sociológica.
Assim, a nossa intervenção limitar-se-á a sublinhar os
aspectos mais salientes do canto e, com eles, os mais pronunciados particularismos
regionais, atendendo, sobretudo, ao facto de terem sido eles em geral recolhidos e
avaliados de acordo com critérios de flagrante subjectividade. Daí sucede, aliás,
apresentar a nossa investigação musical resultados fragmentários e de algum modo
tendenciosos. Com efeito:
Não passaram do papel os projectos oficiais de
inventariação sistemática da nossa tradição musical.
1. Deve-se a auscultação esporádica das
suas fontes à iniciativa de pesquisadores de rara dedicação que, todavia, nem sempre
souberam evitar o escolho da obediência a modas estéticas ou preconceitos de escolas ou
capelas.
2. Acham-se com frequência arredados das
recolhas os espécimes que porventura melhor poderiam definir a psique colectiva, tais
como as fórmulas elementares do trabalho, os cantos sociais e políticos, as canções
que registam as pulsações íntimas do homem rural, etc. Mais gravosamente ainda, a
matéria musical é-nos restituida não raras vezes num estado de invulgar empobrecimento,
devido a simplificações das estruturas melódicas e harmónicas.
3. Nestas circunstâncias, o canto perdeu
singularmente, na tradução que dele nos é dada, a força telúrica e o significado de
facto social dinâmico.
4. Encarado sob um certo ponto de vista
recreativo, o nosso folclore musical adquiriu uma imagem caracterizadamente infantil e
inconsequente. Nesta ordem de ideias, as criações populares foram quase sempre tidas por
produtos culturais inferiores, isto é, resíduos ou adaptações sui generis da chamada
arte culta.
5. Do que ficou dito, poder-se-á concluir
não ter a nossa pesquisa musical acompanhado os progressos da investigação etnológica
que, com Teófilo Braga, José Leite de Vasconcelos, Jorge Dias e outros, conheceu fecundo
desenvolvimento na diversidade das suas perspectivas. Mas será de observar, também, não
terem sempre os mestres da nossa etnografia conferido total importância ao contributo
musical para o conhecimento do homem português.
Deste modo, melhor se entenderá a nossa prudente reserva
no que respeita à desejável tipologia da nossa música folclórica, cujos fundamentos,
cremos, mister seria procurar em domínios aparentemente distantes. Com efeito,
afigura-se-nos estar a nossa tradição rigorosamente relacionada com fenómenos de ordem
geográfica, histórica e social, que nela intervieram de modo indiscutível.
Neste particular, conviria apurar o âmbito e peso relativo
de factores que refiram, por exemplo, a situação geográfico peculiar de Portugal
(receptáculo de correntes culturais justapostas vinda do Este); a nossa miscigenação
com Árabes e Judeus; os Descobrimentos e os seus reflexos no plano psicossocial: a
fixação de numerosos escravos africanos; as relações seculares com vizinhos de várias
etnias, reunidas sob a coroa de Castela; a sedentarização de tribos ciganas; enfim, os
movimentos migratórios e a própria colonização.
Mas faltaria ainda descortinar num país de tão velha
nacionalidade, e apesar do papel unificador do Estado e da Igreja, as razões de tão
marcadas diferenciações regionais e, outrossim, determinar o porquê da tão probante
funcionalidade da nossa canção popular, o que sem dúvida remeteria para questões
lindantes com estruturas fundiárias e sistemas de produção.
A todas estas perguntas, praticamente sem resposta,
contrapõe-se a firme presença do canto, cuja função sempre se ajusta às leis da
sobrevivência na sociedade tradicional e de economia rural, em que ritos do trabalho e de
religião visam assegurar ao homem a sua salvação no mundo terrestre.
Se quiséssemos agora considerar o que de mais
significativo revela a nossa canção popular, do ponto de vista da sua natureza,
modalidades, estruturas e funções, não hesitaríamos em apontar para quatro aspectos
díspares mas inequívocos e cuja apreciação conjunta permite detectar a profunda
integração do fenómeno musical na vida quotidiana das populações rurais.
1. A expressão polifónica parece-nos ser
a que mais pertinentemente afirma o comportamento musical do nosso povo, atestando nas
suas várias formulações um longínquo enraizamento e uma vasta implantação
territorial. Ao abranger grande parte dos distritos de Aveiro, Beja, Braga, Castelo
Branco, Guarda, Viana do Castelo, além de concelhos ou zonas limitadas dos distritos de
Coimbra, Évora, Santarém e Vila Real, o canto polifónico assumiu entre nós uma
importância raramente igualada em povos da Europa ocidental (notemos de passagem a sua
quase inexistência na vizinha Espanha).
Sumariamente, esta polifonia apresenta as formas antigas do
gymel (canto em terceiras) e do fabordão (canto em terceiras e sextas) e, deste, formas
mais elaboradas a três e quatro vozes (organum). É de sublinhar o facto de ela ser
entoada apenas por mulheres em todas as regiões, salvo no Alentejo, onde é de uso quase
exclusivo dos homens. Assinalam-se, contudo, exemplos de excepções, que são certos
cantos rituais da Beira Baixa e Beira Litoral e certas modas alentejanas de trabalho, que
admitem, respectivamente, vozes masculinas e femininas.
Por fim, o que mais surpreende nesta polifonia é o seu
ajustamento às ocasiões do trabalho (sacha, sementeira, ceifa, varejo da azeitona,
arrancada, maçadela e espadelada do linho, etc.) a testemunhar a sua solidariedade com as
tarefas vitais do homem do campo.
2. A música que costuma designar-se
genericamente por música religlosa ocupa um espaço inegável na nossa tradição, pela
variedade e riqueza das suas expressões. Oferece-nos ela derradeiros vestígios de
estilos e modos arcaicos, ao acompanhar cerimónias que a liturgia católica fixara e,
sobretudo, ao inserir-se em práticas exteriores ao culto.
Assim, ao lado de músicas litúrgicas folclorizadas,
outras há que exerciam, ou ainda exercem, funções rituais libertas dos cânones ou
imposições eclesiásticas. Disso são exemplo os cantos de romeiro baseados em incisivas
fórmulas melódicas (Beira Baixa) ou estruturadas polifonias (Minho, Beira Alta, Beira
Baixa e Beira Litoral) e os cantos de peditório das Janeiras e dos Reis (de
Trás-os-Montes ao Algarve, Madeira e Açores).
Essencialmente vocal, esta música, inclui, todavia,
elementos instrumentais cuja função mágico-encantatória se acha patente no
repertório, por exemplo, dos gaiteiros do Nordeste trasmontano e dos tamborileiros da
raia sul-alentejana.
Observe-se ainda que raramente ela se exprime de maneira
devota ou exageradamente mística. Pelo contrário, transparece aí uma curiosa liberdade
na convivência com santos protectores e outras divindades a quem são dirigidas
rogações a visar fins utilitários imediatos.
3. O terceiro aspecto reside na curiosa
omnipresença do romanceiro, assumindo funções diversificadas a reflectir a sua nítida
implicação na vida colectiva e doméstica das populações rurais. A sua difusão é
particularmente notável em áreas extremas do território, ou sejam, o Nordeste
trasmontano e o Algarve. Achamo-lo ligado naquela região às fainas agrícolas, em
especial à ceifa, sob a forma de canto alternado (cuja melodia se desenvolve em geral no
âmbito de um primitivo pentacordo), enquanto no Sul parece perpetuar-se na velha
tradição dos cantos narrativos entoados aos serões. Neste caso, conserva o carácter
melódico dos velhos romances contados em «tom morto», que ainda podem ouvir-se da boca
de gente idosa em todas as zonas do País (inclusive nos conselhos limítrofes da
capital).
A sua interferência em ritos do trabalho (as já
mencionadas cantigas das segadas e, também, das malhas, da apanha das ervas, da fiação
e tecelagem do linho, etc.), em datas consagradas no calendário cristão (Janeiras, Reis,
Quaresma) ou, ainda, em horas devocionais do dia e da noite, assegura-lhe um lugar de
predilecção na memória (e no gosto) popular. Tanto assim é que sobrevive nas
narrações circunstanciais de cegos andantes e poetas vagabundos a testemunharem as suas
sempre renovadas florações.
4. O último aspecto, a que nem sempre se
deu a merecida atenção, diz respeito às tonalidades em que se estruturam bastantes
espécimes do repertório tradicional. Assim, ao lado de um grupo majoritário de
canções tonais (baseadas no clássico maior-menor), Fernando Lopes-Graça distingue
três outros grupos formados por canções modais (onde dominariam o mixolídio, o frígio
e o eólio), canções cromáticas, que assimila a modos, aplicando-lhes a qualificação
de «exóticos», e canções, ou mais propriamente melopeias, partindo de um «simples
núcleo tetracordal ou pentacordal» (romance das segadas e certos cantos de romeiros,
respectivamente, em Trás-os-Montes e na Beira Baixa).
As nossas breves observações não esgotam a inextricável
complexidade do fenómeno musical popular, de que se não podem ignorar aspectos
considerados de menor interesse musicológico, mas não de todo desprezíveis, pois que em
boa verdade não são menos elementos desse fenómeno. Citamos, por exemplo, os
chamamentos e diálogos entoados à distância (Trás-os-Montes, Minho e Beira Alta), as
cantilenas da pedra (generalizadas), os ritmos dos cavadores no plantio do bacelo (Beira
Litoral, Estremadura e Ribatejo) e o leva-leva dospescadores da sardinha (Algarve), que
remetem para velhas culturas pastoris ou nos revelam os primórdios do canto.
Mas muitos outros problemas levantaria uma abordagem que se
desejaria menos superficial, induzindo-nos, entre outras, a observações quanto à
estrutura estrófica da nossa canção (predominância da quadra como suporte da melodia e
sua extrema mobilidade) ou interrogações acerca da diminuta incidência da nossa música
instrumental, do carácter um tanto estereótipado da coreografia popular, ou, ainda, da
permanência, aqui e acolá, do canto liberto da metrificação regular, etc.
Dito isto, restaria considerar a situação presente da
nossa música popular, inserida como ela se acha numa sociedade rural percorrida por
correntes antagónicas. Na ocorrência, apenas nos é licito observar sucintamente:
1. A tradição oferece resistência
frontal às músicas exógenas, mas apenas na medida em que ainda corresponde a
necessidades sentidas colectivamente.
2. Da perda irremediável de espécimes,
estética e socialmente preciosos, que teria sido possível conservar para a posteridade,
não se pode inferir a fatal extinção a breve trecho do folclore musical.
3. Enquanto subsistir a subalternização
social e cultural de vastas camadas da nossa população, ou seja, enquanto não surgirem
condições para o nascer harmonioso de uma cultura nacional identificada com o devir
colectivo, o folclore continuará a constituir o refúgio da criatividade popular, a
imensa floresta onde se ocultam velhos segredos e se forjam novas esperanças.