Ernesto Veiga de Oliveira (1982)
Em 1960, fomos, pela directora do Serviço de Música da
Fundação Gulbenkian2 encarregados de proceder à recolha dos instrumentos musicais populares do
País, em vista a documentar, de modo tão completo quanto possível, esse elemento
fundamental da nossa cultura. O empreendimento, que nenhuns ensinamentos ou experiências
anteriores apoiavam, suscitou problemas e dificuldades muito consideráveis. Como começar
a trabalhar? Como orientar a procura, e o que interessava procurar?
Para responder a esta questão, começámos por enviar aos
párocos, professores primários e outras entidades que vivem em contacto com os povos, um
questionário circunstanciado em que os instrumentos eram distribuídos segundo as quatro
categorias organológicas clássicas cordofones, aerofones, membranofones e
idiofones , com o pedido de indicação das espécies usadas localmente, suas formas
e funções.
De mais de três mil desses questionários, recebemos mais
de mil respostas, o que constitui um resultado muito apreciável quantitativamente; mas,
com essa metodologia, o panorama músico-instrumental do País, além de viciado por
informações descuidadas, apresentava-se como uma floresta profusa e desordenada: por
toda a parte se encontravam praticamente todas as espécies de instrumentos; não víamos
como definir o fio condutor que tivesse um significado expressivo, e o nosso trabalho não
conduzia a nenhures. Foi então que, ao mesmo tempo que pusemos totalmente de lado aqueles
questionários e passámos a praticar o inquérito directo por contacto, convívio e
participação com as pessoas implicadas no fenómeno musical das diferentes terras,
formulámos a regra que permitiu iniciar as nossas actividades de pesquisa e recolha, e
que nos orientou seguidamente todo o tempo: procurar determinar não propriamente os
instrumentos que existiam e se usavam em cada terra, mas sim aqueles que integravam,
tinham significado ou se relacionavam, com as formas e ocasiões musicais características
das diversas áreas. Essa nova orientação que decidimos dar ao nosso trabalho,
iniciou-se numa povoação dos arredores de Viana do Castelo, quando, em boa-hora,
saímos, à beira do desânimo definitivo e da desistência de poder levar a cabo a tarefa
que gizáramos, da casa de mais um pároco que respondera ao nosso inquérito sem qualquer
preocupação de exactidão, indicando que ali se usavam «tambores», e resolvemos ir à
loja do vendedeiro da terra falar com as gentes, entre dois copos, e saber o que eram
esses «tambores»: e demos de chofre com a revelação do reino dos Zés-Pereiras da
Ribeira-Lima, anunciando a riqueza fabulosa que iríamos seguidamente encontrar pelo País
fora.
A partir daí, formas musicais, tocadores, instrumentos,
muitas vezes ainda por desvendar, foram o nosso pão quotidiano, a nossa luta, os nossos
amigos, a nossa alegria, o nosso rumo.
Para o trabalho que empreenderamos calcorreámos vezes sem
conta o País de norte a sul e de leste a oeste, acorrendo às suas festas, contactando
cada vez mais intimamente com todo esse universo através da sua gente: mas esse trabalho,
e mais concisamente a recolha dos instrumentos, feitos verdadeiramente no limiar das
últimas possibilidades, foi por isso, às vezes, muito árduo. Grande número de
espécies, e algumas de entre as mais importantes, pertenciam já então ao mundo dos
«tempos perdidos», das coisas que só existem esquecidas em velhas arcas, desligadas da
vida, ou até mesmo unicamente na memória incerta de pessoas de outra idade. Muitos
instrumentos eram de nós conhecidos através da nossa experiência de vagabundos
pioneiros por todo o País; mas com muita frequência detectámos a sua existência apenas
por uma mera menção uma simples fotografia! encontrada em qualquer livro,
novela, notícia ou gravura antiga; na busca de uns outros, seguimos muitas vezes pistas
fugidias ou mesmo completamente desconhecidas. De casa em casa, ninguém sabia do que se
tratava; até que alguma velhinha subitamente acordava a sua lembrança, e se recordava
que o tio Joaquim, outrora, tocava uma coisa dessas; mas o tio Joaquím já morrera. Não
saberá a filha dele onde essa coisa parará? A filha está no campo e só regressa à
noite; então vamos nós ao campo, para aprendermos que a peça foi por ela dada, há
alguns anos, a um afilhado que vivia na cidade. E lá fomos nós até à cidade,
recomeçar aí o mesmo fadário de buscas. Uma viola campaniça comprámos nós a um homem
que encontrámos pela indicação que nos derão de que andava noutra aldeia, numa
motorizada vermelha, com uma corneta, a vender sardinhas... Uma vez, no Algarve,
metemo-nos, o Jorge Dias e nós próprios, debaixo do tablado do palco de uma filarmónica
de aldeia, entre montanhas de papéis e cenários velhos, móveis partidos, lixo e pó, a
procurar durante horas os cacos de um violão-baixo... que afinal não apareceu... Mas por
outro lado, este trabalho foi uma ocasião incomparável e excepcional de penetrarmos
verdadeiramente o segredo mais significativo de cada terra, de contactarmos com as formas
mais ricas e expressivas da nossa cultura, com as figuras mais pitorescas da nossa
paisagem humana. Lembramos esse picaresco trio dos Zés-Pereiras de Vila Franca do Lima,
possessos da loucura mansa do bombo, que é a sua mais funda paixão, o seu orgulho, a sua
glória; um dia, convictos e concentrados, ofertaram-nos uma serenata de bombo e caixa
a verdadeira música, segundo eles, mais antiga e linda, a única digna de
acompanhar o Senhor, no Compasso da Páscoa. O seu triunfo é o barulho a
«pancadaria»: e falam desvanecidos em proezas de bombos «campeiros», que, num
desfile em Lisboa, fizeram tanto estrondo que partiram os vidros das janelas das casas que
bordavam o seu percurso. Quem os cruza pelos caminhos, de fato branco e barrete vermelho,
como se envergassem a farda mais luxuosa, mal adivinha o que representa para eles o grande
bojo sonoro que carregam, coçado do uso, das caminhadas, das paragens em vendas e tascos
gente livre e despreocupada, para quem o sentido da vida é a expansão dessa
força lúdica que os habita, que deixam as mulheres em casa à espera, e vão, a pé, em
camionetas ou como calha, transtornados com a música que os habita e modela, com os
foguetes e o ajuntamento, a animação da rua, o vinho, o sol o próprio sentido da
festa. Andámos em rusgas, por terras minhotas, empapados da sua beleza incomparável
o deslumbramento de um fiadeiro em casa do Marcos Rocha, em S. Lourenço da
Montaria, as gótas e os viras de S. João d'Arga, com o Nelson de Covas a cantar:
«Ó minha Rosinha
eu sou como o gaio
de dia é que eu durmo
de noite é que saio»
Estivemos num arraial em Vila Caiz, onde ainda podemos
contemplar a chula dançada quase hieraticamente, por um par, ao som da rabela...
Seguimos, com o gaiteiro, a tocar, na carrocinha dos mordomos, à frente, em círios
estremenhos, e depois à chegada dentro do templo, na Nazaré e na Misericórdia... Em
Trás-os-Montes, ouvimo-lo nas delirantes alvoradas e arruadas das festas, dos Rapazes,
dos Pauliteiros, e outras. Recordamos agora o velho tio Rebanda, de Mazouco, que encerrou
a sua história ao dar-nos a flauta que foi toda a sua juventude, a companhia da sua
aventura a sua justificação no mundo. Num último toque, que pensamos que não
acabaria mais, despediu-se dela; e quando no-la entregou, foi como se levássemos nas
mãos o próprio corpo a arrefecer do que fora a sua vida... E o José Manuel São Pedro,
de Travanca do Mogadouro, que nos ensinou o segredo esotérico da gaita de foles, que só
ele sabe: «eles dizem que eu sou meio maluco e meio bêbado mas eu sei que para
tocar bem a gaita o que é preciso não são os dedos como os outros pensam: é alegria e
amor do próximo; quando a gente se sente cheio de alegria e de amor do próximo é que a
gaita diz o que é; e também alcool do espírito»; e a confirmar isto, foi ali ao lado
encharcar-se conscienciosamente de álcool do espírito, para que a gaita soasse bem. Ou
ainda o tio Manuel Inácio, de Genízio, em Terras de Miranda, com os seus setenta e
tantos anos de alegria e humor, a tocar a flauta a caminho da faceira, cavalgando o seu
burrico ou à lareira da sua velha cozinha onde nos deu de comer e de beber.
Revemos mulheres beiroas, miudinhas e mirradas sentadas à
porta de casa nas cadeiras baixinhas de tábua, sob um chapéu de homem, escondendo o
segredo do seu inesgotável repertório ao adufe; e em especial a gente da Malpica com
duas velhinhas de mais de 90 anos, para quem o fogo desse instrumento e da zabumba foi
mais forte do que o preceito de abstenção da Quaresma, e se pôs para ali a cantar e a
dançar, arrastando-nos a nós próprios na sua vitalidade. E enfim, o Alentejo, onde a
majestade dos seus corais ofuscava formas instrumentais insuspeitadas, que afloraram com a
nossa deambulação: o querido amigo jamais esquecido Jorge Caranova, que nos
revelou a viola campaniça, cantando, sentado numa pedra, à porta do local onde
trabalhava; as festas de Barrancos, de Santo Aleixo, de Ficalho, onde vive o tamboril e a
flauta, o Torrado Rodrigues, o António Cuco, o Saleiro; o pandeiro, nas Saias de Santa
Eulália... E outros ainda, num caleidoscópio de situações e pessoas que ficaram a
representar, para nós, a face mais rica e fascinante a face mais autêntica
do País.
O nosso instrumental popular está a acabar, e os tocadores
rareiam. Quem tocará ainda a bandurra beiroa e a viola campaniça, desaparecidos o tio
Manuel Moreira, de Penha Garcia, e o Jorge Caranova, de Santa Vitória?... E quando se for
o Virgílio Cristal, quem ficará para tocar o deslumbrante tamboril e flauta em terras
mirandesas?...
É bom, é mau? É a lei dos tempos, para lá do bom e do
mau. Tudo isso pertenceu a um estádio artesanal, que significou também decerto
estagnação, pobreza, injustiça; mas quando se calarem de vez esses funâmbulos
iluminados o tio Inácio e o Virgílio Cristal, o Manuel São Pedro, o Zé Peludo,
o Bico de Fragoso, o Diogo Correia e as mulheres da Malpica, o Caranova e o Vilarinho de
Covas, como se calou o Pedro Vergas da viola toeira, e quando as alvíssaras da Páscoa ou
as alvoradas dessas bárbaras festas trasmontanas forem feitas por um altifalante
instalado numa fourgoneta que atroa os ares com a última canção duma vedeta da rádio,
o mundo terá certamente perdido uma grande riqueza ou melhor: a riqueza do mundo
valerá muito menos a pena ser vivida.
1 Publicado na Revista da JMP "Arte
Musical", Número especial, por ocasião da Quinzena de Etnomusicologia (Outubro de
1982), pp. 6 a 10. Revisto e digitalizado por Domingos Morais, em Agosto de 1999.
2 Drª Maria Madalena de Azeredo Perdigão