| "Do gesto musical,
gerador de identidade cultural, catalizador da expressão pessoal" |
Domingos
Morais (1997)
As músicas que hoje ouvimos (e mais raramente
fazemos) neste final de milénio, parecem-nos talvez desligadas de muitas das nobres
funções e actividades que nos primordios das comunidades humanas pontuavam a
sobrevivência e a vida ritual. A divisão operada no quotidiano da população activa
entre tempo de trabalho e de não-trabalho, a par com a emergência de uma rentabilidade a
todo o custo, afastaram-nos de vez de actividades que decorriam ao ritmo das estações do
ano e dos ciclos próprios da recolecção e caça, da agricultura, pecuária, pesca e
artesanato. Uma feliz metáfora de Michel Giacometti no seu livro "Cancioneiro
Popular Português" reclama a presença de músicas "Do berço à cova",
como algo que nos singulariza no mundo das espécies. As músicas aparecem-nos
actualmente, p. e., nos locais de trabalho ou nas grandes superfícies comerciais com
funções previstas de aumentar a produtividade, estimular o consumo, induzir estados de
euforia e de diminuição das capacidades de auto controlo.
Ao referir o que pensamos ter sido o papel das músicas nas comunidades humanas
pré-industriais, como reguladoras dos ritmos próprios das funções a que estavam
ligadas, como suporte de conhecimentos e valores e como linguagem e afirmação pessoal e
grupal nas comunidades, reportamo-nos a uma reflexão que nos tem acompanhado ao longo dos
últimos anos e que nos foi muito útil na introdução de conteúdos de expressão e
educação estética nas reformas curriculares portuguesa e dos países africanos de
língua oficial portuguesa.
As práticas artísticas ganharam espaço e foram reconhecidas nos seus contributos para o
sucesso escolar e um melhor desenvolvimento global dos alunos. Os estudos sobre os efeitos
da educação estética realizados nos Estados Unidos e em vários países europeus na
década de 80 vieram confirmar os benefícios para as comunidades de um conjunto de
práticas expressivas e artísticas que foram desenvolvidas quer pelo ensino formal, quer
pela iniciativa comunitária. Nos países africanos que nos últimos anos acederam a
dedicar parte do tempo escolar a este tipo de actividades os estudos realizados vieram
confirmar ser a educação estética uma componente essencial na formação dos alunos, ao
contrário do que pensavam alguns organismos internacionais que a consideravam um luxo
apenas possível em "países ricos"
As situações novas em que homens e mulheres desenvolvem a sua actividade profissional
teriam também muito a lucrar se algumas das formas próprias desenvolvidas pela espécie
ao ligar a música (e a dança) ao trabalho não fossem esquecidas, sendo substituídas
por subprodutos musicais, manipulatórios e entorpecentes da vontade e do prazer. O
balanço necessário entre realização pessoal, bem estar e afirmação cultural
contrapostos a produtividade e rentabilidade necessitam de ser repensados nas sociedades
que defendendo teoricamente valores e direitos têm dificuldade em os tornar efectivos nos
locais de trabalho modernos.
É-nos assim possível enumerar alguns temas, dificuldades e vantagens
que permitem a quem for sensível e interessado intervir de forma a facilitar um melhor
acesso ao gesto musical tal como o entendemos e que pensamos merecerá um amplo consenso.
As definições operacionais que damos de músicae de gesto musical servem
para situar o leitor no esboço de programa que indicamos.
Música: universo significativo de sonoridades e estruturas sonoras, reconhecido
como tal por um determinado grupo humano, habitualmente ligadas a procedimentos e
instrumentos próprios.
Gesto musical: mobilização e domínio do corpo
enquanto gerador de música. A sua aquisição consegue-se pela observação, imitação,
experimentação e reinvenção, permitindo o desenvolvimento de capacidades vocais e
corporais, o domínio de instrumentos,o movimento e a dança.
Temas:
O tempo e os espaços adequados ao desenvolvimento da
identidade músico/gestual
Os transmissores e aferidores das competências
músico/gestuais
A expressão pessoal e a norma cultural músico/gestual
Sentimento de pertença e desenvolvimento progressivo da
capacidade de assumir papéis músico/gestuais e de dança na comunidade
Capacidade de aceitação da mudança nos referentes
culturais próprios, de integração de influências externas, de abertura a outros modos
de expressão de outros grupos culturais
Capacidade de inovação e de assumir papéis de
transmissor/aferidor na comunidade
Algumas dificuldades:
Recusa de referentes culturais da sua comunidade
Adesão a novas normas e procedimentos não conseguida
Dificuldade no reconhecimento e aceitação de outros
grupos culturais
Algumas vantagens:
A aquisição de normas e procedimentos culturais ser
habitualmente considerada como uma das manifestações mais significativas do crescimento
pessoal, permitindo o reconhecimento do indivíduo como pertencente a uma comunidade.
Existirem habitualmente recursos humanos e materiais
disponíveis em todas as comunidades para a sua transmissão, excepto em situações
extremas de guerra, catástrofes ou de grande mudança nos referentes culturais.
Serem as actividades artísticas um dos domínios menos
dependentes do desenvolvimento tecnológico e onde há um maior aproveitamento e
inovação a partir de recursos locais
O domínio de práticas artísticas ser habitualmente
considerado como um factor de distinção nas comunidades
Termos hoje à disposição um enorme acervo de
publicações, estudos, gravações e imagens.
Haver abertura nos novos curricula escolares para a
inclusão de temáticas regionais, que urge organizar, sob a forma de repertórios
aconselhados para os diferentes grupos etários, a par de cursos de formação dos
professores e de acções de divulgação realizadas por pessoas e grupos com
conhecimentos adequados e sensibilidade pedagógica.
Para cada um dos parágrafos anteriores seria útil um
aprofundamento em que os interessados procurariam ver de que forma poderiam desenvolver
futuras iniciativas no âmbito da sua esfera pessoal e profissional.
Artigo publicado na Revista da Sociedade Portuguesa de Antropoanálise,
nº 3, 1º e 2º Semestres, 1997 (pp.35/36)
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