Mulheres do Minho
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Trata-se de
uma obra de rara beleza e de indiscutível interesse musical e cultural.
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Cantares
Mulheres do Minho
Cantares Religiosos de Mulheres do Minho
Excertos do Texto publicado no Libreto
do CD "Cantares Religiosos de Mulheres do Minho" -
Edição Açor
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. . . . . . . . . . .Cantares
Religiosos de Mulheres do Minho é uma pérola musical. Ao todo são nove mulheres, de
várias gerações, reunidas em torno da recuperação do repertório popular do
norte de Portugal. Um disco de grande beleza e de um valor incontestável.
O Grupo de Cantares surgiu por se ter constatado que, pouco a pouco, as
verdadeiras intérpretes esta música vocal vão desaparecendo. Uniu-se o gosto de cantar
com a vontade de dar voz a estes cantos de mulheres. Alguns dos elementos do grupo tiveram
mesmo contacto , na sua infância e mocidade, com estas manifestações musicais.
Tentou-se uma aproximação tão grande quanto possível aos modelos ouvidos e gravados.
Não se trata, porém, de um acto de pura imitação mas antes um acto de apropriação
com a finalidade de preservar do passado aquilo que foi semente de trabalho e fruição.
Acredita-se que estes cantares que, durante séculos, animaram trabalhos, serões e
cerimónias, poderão ser recantados e apresentados como uma situação poético-musical
que traz em si a marca de uma realidade musical e artística.
Assim, como já não se canta durante os trabalhos agrícolas, também cada vez
menos se festejam, com cantos antigos, acontecimentos litúrgicos ou religiosos. Os
cantares populares de carácter religioso como os Martírios, a Encomendação das Almas,
os Cantos do Senhor de Fora, os Romeiros, e tantos outros quase deixaram de ser ouvidos.
Daí a pertinência deste trabalho que tem por objectivo principal o registo e
divulgação do que ainda perdura nas memórias das velhas lavradeiras minhotas.
Após a publicação do livro "Os Cantares Polifónicos do Baixo
Minho" (Azevedo, 1997), seguida da gravação do CD "Cantares das Mulheres do
Minho" (Açor, 1998), onde se reproduziam algumas das modas do campo transcritas no
livro, ficou em projecto um novo trabalho discográfico com cantares religiosos. Estes
estavam também quase só a cargo das mulheres e igualmente em vias de total
desaparecimento.
O Profano e o Sagrado
Não se pode contrariar a tese de que a música litúrgica contribuiu com a sua
quota-parte para a formação de muitos dos cantares populares religiosos. Outros, porém,
não tiveram origem eclesiástica. Pertenciam já, como a maioria de carácter profano, a
uma música autóctone da região galaico-minhota.
No plano da música, a fronteira entre o sagrado e o profano é muito ténue;
estes dois espaços não são compartimentos estanques, influenciando-se entre si. Foram
constantes as interferências e proibições da Igreja Católica no que respeita à
música popular cantada dentro da Igreja. O Concílio de Braga de 563, reunido por S.
Martinho de Dume, proibiu que se cantassem muito dos hinos e cantos de caracter popular
que estavam incluídos nas missas e noutras celebrações.
Ao longo dos anos, a música litúrgica foi sendo fixada no Cantochão mas o
povo, apoiado num substrato musical muito antigo, apoderou-se de alguns destes cânticos
da Igreja e popularizou-os, dando-lhes a sua interpretação própria.
Nesta região, como quase toda a música cantada estava a cargo das mulheres,
são elas as que interpretam a duas a três vozes por vezes mesmo com o
guincho e sem qualquer acompanhamento instrumental (a cappella),
tal como os cantares profanos.
Actualmente, a ,música litúrgica sofreu muitas transformações e evoluiu
naturalmente, perdendo a maior parte das características arcaicas. Apareceram novas
melodias com novas letras acompanhadas por órgão. Nas aldeias minhotas, porém, a
conservação de alguns cantos mais arcaicos durante os actos liturgicos depende do
pároco que pode ser mais ou menos conservador, mais ou menos aberto à mudança. Em
Goães, por exemplo, as velhas cantadeiras não se atreveram a cantar coisas da
igreja, pois isso agora é para as moças novas, ensaiadas por um seminarista
que toca órgão electrónico. Por usa vez em Tebosa, há poucos anos, durante a
missa, ainda se podiam ouvir alguns cânticos a duas e três vozes, entoados pelas velhas
cantadeiras, pois o Senhor Padre não se importa.
No Minho, não há festa popular sem as suas ambiguidades sacro-profanas. Mesmo
acontecimentos de natureza marcadamente religiosa são, simultaneamente, ocasiões
lúdicas. Em Cervães, durante a procissão da Quinta-Feira Santa, denominada
Endoenças, onde foi gravado o Canto da Verónica aparece, a abrir a
cerimónia, um personagem mascarado que faz lembrar, pelo vestuário e atitudes, um bobo
medieval: aos saltos e gritos, assusta as pessoas que estão à espera de ver passar a
procissão, belisca as pernas às moças (que tentam adivinhar o que está por debaixo do
disfarce), fazendo rir a assistência, qual histrião da corte, em nítido contraste com
solenidade do momento pois logo a seguir vêm os andores e figurantes, os párocos, a
banda de música e o povo. Durante todas as romarias, depois da missa solene, em sermão e
por vezes outras cerimónias religiosas, há sempre lugar para a festa, com as suas
músicas e cantares. De salientar que estes cantos a várias vozes, executados a
cappella e que eram essencialmente uma arte feminina muito apreciada, hoje
facilmente se deixam abafar pela música instrumental, ao vivo ou gravada. As potentes
aparelhagens sonoras impõem-se por todo o lado.
Também as peregrinações a locais tornados sagrados pela presença de uma
igreja ou capela onde muitos rurais minhotos se deslocam, umas de maior vulto como o
Santuário do Sameiro, a Senhora do Alívio, o São Bento da Porta Aberta, por exemplo,
outras mais humildes como a capelinha de São Bentinho do Hospital, em Braga, são
acompanhadas por cantares próprios.
Contributos para uma classificação
dos cantares
As semelhanças entre alguns dos cantares contidos no primeiro CD, considerados
profanos, com os que aqui se apresentam, considerados religiosos ou para-religiosos, são
notórias: como as executantes são as mesmas, o modo de cantar é também o mesmo e a
estrutura das polifonias igualmente idêntica, bem como a sonoridade. Há uma cantadeira
que lidera o grupo e que começa um canto, num registo normalmente bastante grave;
juntam-se-lhe depois os restantes baixos. Por vezes, um destes
baixos desdobra-se, em função de contrabaixo, para uma terceira inferior,
nas semi-cadências era o chamado baixão. Em seguida vão entrando, de
um modo pouco aleatório, as outras vozes. As notas do acorde final são bastante
prolongadas. Em alguns exemplares aparece ainda o fim ou o
guincho, a terminar cada frase melódica. O movimento das vozes é quase
sempre directo ou paralelo e o andamento é lento ou mesmo arrastado.; a linha melódica
ondula e desenvolve-se por graus conjuntos ou próximos. Também como em muitos dos
cantares profanos existem portamentos, melismas e ornamentos, bem como o
hoquetus ou suspiro medieval que consiste na respiração a meio de uma
sílaba. São entoados com vozes guturais, abertas e com uma projecção sonora natural e
vigorosa.
Nas recolhas feitas surgem cânticos que conservam marcas fortes da sua feição
arcaica, normalmente entoados em locais de culto e em ocasiões próprias (Canto da
Verónica, Canto das Almas, Aleluia, Derrama) e cantos mais libertos das limitações da
liturgia, com funções rogativas e processionais, usados em cerimónias festivas fora da
igreja (Os Romeirinhos, a Senhora Santana, a Senhora do Sameiro, a Salve Rainha). Oliveira
(1982, p. 32) faz referência a uma música de feição tradicional distinta da música
sacra: a para da música sagrada propriamente dita, existe uma outra categoria
musical, que é usada pelo povo em determinados acontecimentos ou celebrações de
carácter ou origem religiosa (...) que é uma espécie de música sagrada popular e não
eclesiástica, e merece preferentemente o nome de música cerimonial.
Durante a época quaresmal, alguns destes cantares religiosos eram entoados
durante os trabalhos agrícolas porque os cantares profanos estavam interditos. não
podíamos cantar coisas que falassem de amor; amor, só a Deus ou a Nossa Senhora. Como
não sabíamos trabalhar sem cantar, cantávamos a Senhora do Sameiro, ou
então Quem Quiser, afirma uma cantadeira de Santa Marinha de Oleiros.
Araújo (1982, p. 188), sobre as cantigas da Semana Santa diz: Durante a
Semana Santa, as raparigas não cantavam cantigas profanas. Mas, incapazes de ficar
caladas durante os trabalhos de campo, têm os seus cantares especiais. Assim, na
freguesia de Vila Franca, enquanto punham batatas, o amigo António Maciel F. Barbosa,
colheu a seguinte letra que teve a gentileza de me enviar:
Estamos na Semana Santa
Na Semana do Senhor
Nem se canta, nem se dança,
Nem se deve falar de amor...
Quinta-Feira, dia de Indulgência
Sexta-Feira, de Paixão Sagrada
Sábado de Aleluia
E Domingo da Ressurreição
Dia de Santa Alegria
Aleluia, aleluia, aleluia
Foi bastante difícil determinar com certeza onde e quando eram executados todos
os cantares que se apresentam. Alguns não ofereciam dúvidas sobre as suas funções
enquanto que outros arrastavam consigo incertezas e ambiguidades. As Janeiras
ou os Reis, os Martírios ou Canto da Verónica, os
Romeirinhos ou o Botar das Almas são exemplos do primeiro caso,
isto é, com exactidão se determina a função e o contexto em que eram cantados. Os
cantos processionais como A Senhora do Sameiro ou Salve Rainha
porém, podiam também ser ouvidos nos campos, durante os trabalhos, sobretudo na época
da Quaresma. O cântico Derrama, tanto funcionava como um canto litúrgico,
ouvido durante a missa, no Ofertório, como podia ser ouvido entoado pelo povo que o
trouxe para fora do culto e o enriqueceu com muitas quadras onde se pedia a bênção para
o nosso povo, o nosso milho, etc. Com uma polifonia muito mais
complexa.
Mas entre outros exemplares quase se torna impossível determinar se fazem ou
não parte de cantos religiosos ou para-religiosos. Aliás, sobre esta matéria, as
executantes eram muito pouco precisas, ou por não acharem pertinente ou por a memória
lhes falhar. Frases como: Este canto não era da igreja, não senhora, mas também
dava, Cantávamos quando desse, não era preciso ser na igreja ou na Quaresma;
só sei que era antiguíssimo e, muitas vezes, desentendimentos entre as cantadeiras
de uma mesma freguesia, em nada ajudavam a clarificar a questão.
Há dois exemplares que se situam no limite da ténue fronteira entre a música
de carácter religiosos e de carácter profano: Quem quiser, assumido pelas
executantes como moda de campo mas que, por todas as suas características, se
enquadra entre os cantares religioso, e Saramago verde que, só pela melodia,
se deveria aproximar tangencialmente dos cantares para-religiosos.
A Religiosidade Popular
A religião dita popular tem a sua própria linguagem e os seus ritos são por
vezes diferentes ou assumem outras formas que não as da religião oficial da Igreja
Católica. A oferta de velas e de objectos em cera (sobretudo representando partes do
corpo), os ex-votos, o pagamento de promessas subindo escadórios de joelhos ou dando
voltas aos locais de culto, indo amortalhando dentro de um caixão, a recitação de
ingénuas orações populares como Pai Nosso Pequenino ou as orações ao deitar e ao
levantar, e muitas outras manifestações são normalmente conotadas com a religiosidade
popular.
Mas quem não pertence ao grupo dos rurais do chamado povo, também
vai a pé a Fátima para pagar uma promessa, também põe uma moeda na Catedral para
acender uma vela eléctrica, também reza e faz ofertas de dinheiro aos Santos Padroeiros
para pedir alguma mercê. As orações serão mais elaboradas e convencionais, talvez
menos emotivas e expontâneas, talvez menos emotivas e espontâneas, mas trata-se da mesma
religião, apenas expressa de forma diferente.
A reciprocidade simétrica intrínseca nestes actos de fé pede-se um
favor que depois de recebido terá de ser pago está presente em todas estas
manifestações, venham elas das camadas mais cultas ou das camadas populares. Marcel
Mauss (2001) explica que os sistemas de prestação, troca e reciprocidade de qualquer
sociedade se reflectem através de toda a cultura tanto na religião como nas leis, na
moral e na economia. São os fenómenos totais, segundo a sua terminologia.
Paga-se um favor a um amigo ou vizinho da mesma forma que se paga a um santo: com um
sentido de obrigatoriedade. As dívidas contraídas têm de ser pagas sob pena de se
receberem sanções.
No livro já citado sobre os cantares das mulheres do Minho, foram referidos os
trabalhos de favor para as tarefas agrícolas e outras que exigiam muitos
braços. Por todo o noroeste rural esta inter-ajuda entre vizinhos é bem conhecida.
Paralelamente, as relações que se estabelecem entre os rurais minhotos e os Santos, a
Virem, e Deus são idênticas. Existem igualmente relações de troca entre os seres
humanos e os seres divinos. Uma vez recebida a dádiva pedida, esta não pode deixar de
ser paga, com uma contra-dádiva previamente especificada. E não se deve morrer sem ter
pago todas as dívidas, sejam elas materiais ou espirituais. Se se recebeu um bem ou um
favor, ele deve ser pago: é a reciprocidade simétrica referida atrás, princípio
organizador da visão do mundo. O que não se paga com ais paga-se com
suspiros, resumiu uma informante, referindo-se a um médico, amigo da família, que
não lhe levava dinheiro pelas consultas. Como os Santos, é o mesmo. E olhe que há
santinhos bem vingativos... O São Bentinho, por exemplo, acrescentou.
A maioria dos cantares aqui apresentados faz parte da manifestação da
religiosidade popular. Quadras simples, espontâneas, são entoadas com verdadeira
devoção. Nalgumas, porém, está bem patente a reciprocidade referida. Por exemplo, no
Canto do Senhor Fora, pede-se pela salvação da alma que vai partir mas ao mesmo tempo
com a certeza de que essa mesma alma vai interceder, no céu, pelos que cá ficam.
Que se vá embora/ Deixamo-la ir/ quela
vai pró céu/ por nós vai pedir
A maioria dos cantares populares religiosos minhotos são repassados de intensa
emoção e de fervor religioso, sejam eles mais austeros e arcaicos ou mais ligeiros. A
religiosidade do povo desta região é bem evidente em todas as suas manifestações.
Saber cantar,
uma das mais-valia das mulheres
As mulheres minhotas têm sido portadoras de uma tradição musical cuja
antiguidade é difícil de avaliar. Os seus cantares encontravam-se intimamente ligados à
vida social inserindo-se nas normas da comunidade rural. A presença constante do canto
prova que cantar era uma prática habitual e havia cantares apropriados às mais diversas
circunstâncias.
Nesta região ser mulher era ser trabalhadeira. Era esta qualidade mais
apreciada. Mas nem só pelo trabalho a mulher se impunha; afirma-se igualmente pela
palavra, dita ou entoada, e era através dela que transmitia o seu saber.
As mulheres eram o factor principal de enculturação e de sociabilização.
(Azevedo, 1997). Com uma vida repleta de afazeres, tendo as mão sempre ocupadas, as
mulheres não tinham espaço nem ocasião para aprendizagem de qualquer instrumento
musical. Restava-lhes somente a voz. Anne Caufriez (1998) equaciona os seguintes
binómios: Femme/ Voix; Homme/Instrument.
Cantar e gostar de i fazer era como que um comportamento colectivo e era
considerado um valor social. As boas cantadeiras eram muito estimadas e requisitadas pelos
patrões, para os trabalhos agrícolas, e pelos padres, para as cerimónias litúrgicas.
As mulheres entoavam as modas de campo eram normalmente as mesmas que
lideravam os cantos da igreja. Continuava o protagonismo feminino com os seus cantares em
polifonia, numa postura que conciliava versos profanos com uma manifesta devoção
religiosa.
Nas festividades organizadas pela igreja, as cantadeiras marcavam sempre a sua
presença: nas missas, nas procissões e noutras solenidades, eram sobretudo as suas vozes
que se ouviam.
Na sua tese de doutoramento, Elisa Lessa (1999), ao debruçar-se sobre a
prática musical nos Mosteiros femininos, afirma que, no caso das religiosas, a entrada no
convento sem dote era permitida às candidatas que tivesse conhecimentos musicais. As
monjas cantoras tinham privilégios próprios: mais tempo para se dedicarem aos ensaios,
sendo dispensadas de alguns trabalhos e de algumas Horas Litúrgicas, mimos
especiais na alimentação, o pagamento de mais um tostão além da propina a que cada
religiosa tinha direito e, sobretudo nas ocasiões festivas como o Natal, Páscoa e Santos
Padroeiros, oferta de ramos de flores, doces, galinhas, peixe e dinheiro. Os privilégios
referidos erma fruto do reconhecimento de um serviço prestado à comunidade e atestavam o
valor que era dado a quem tinha aptidões para o canto.
Pode assim concluir-se que, o facto de pertencer ao grupo das Senhoras Cantoras,
nos Mosteiros, ou ao grupo de Cantadeiras, nas aldeias, era uma mais-valia que concedia
às mulheres admiração e apreço por parte de todos.
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