| O mistério
Giacometti
Por José Alberto Sardinha
Publicado no Jornal Expresso a 6/03/1999 |
| Mais
de 30 anos depois da data original de publicação, foram finalmente [há
cerca de um ano] reeditados em CD os célebres cinco volumes dos «Arquivos
Sonoros» (os míticos cinco LP de capa de serapilheira), onde Michel Giacometti e
Fernando Lopes Graça reuniram o resultado das suas recolhas de música popular
tradicional portuguesa. A importância do acontecimento justifica amplamente o dossier que
agora publicamos. |
Retrato
do etnomusicólogo corso |
|
TALVEZ por as edições de
recolhas musicais terem sido sempre de tiragens reduzidas e, por isso, se terem esgotado
rapidamente, tem havido na etnomusicologia portuguesa a tendência para deixar cair no
esquecimento as investigações que foram sendo feitas no passado. |
Daí a importância da actual
reedição de discos da Antologia da Música Regional Portuguesa, da autoria de Michel
Giacometti e Fernando Lopes-Graça, publicados na década de 60 e princípio da de 70 -
já lá vão 30 anos! -, a qual irá permitir o acesso a gravações de grande valor há
muito esgotadas, facilitando simultaneamente uma reavaliação histórica e etnomusical da
obra destes investigadores. |
Salientamos desde logo que a asserção
inicial é válida também para Giacometti, ou seja, é essencial não deixarmos cair no
olvido a obra de Michel Giacometti, mas é igualmente fundamental não esquecermos as
pesquisas e as obras de todos os investigadores que o antecederam. Isto porque não
podemos apreciar e analisar a sua investigação sem sopesarmos devidamente as pesquisas
efectuadas pelos investigadores antecedentes, alguns dos quais são sistematicamente
preteridos quando se fala de recolhas etnomusicais no nosso país. |
Uma imagem trabalhada, em alto contraste, de Michel
Giacometti em pleno trabalho de recolha, algures no interior do país
|
É evidente que o estudo
comparativo dessas pesquisas pretéritas, os seus méritos e descobertas, só será
possível em sede de uma história da investigação etnomusicológica em Portugal, que
não é, obviamente, o objecto deste artigo. É, mesmo assim, oportuno
referir, ainda que resumidamente, os trabalhos que antecederam Michel Giacometti, já
porque, pelo seu pioneirismo e importância, são merecedores de destaque, já porque nos
ajudam a situar historicamente a obra do próprio Giacometti. |
Sem falar nas gravações de
Kurt Schindler, aliás de diminuta expressão quantitativa e geográfica (limitaram-se a
Miranda do Douro, Vinhais, com alguns exemplares também de Montalegre e Boticas),
haveremos de lembrar, de entre os pesquisadores que antecederam Giacometti, Armando Leça,
autor do primeiro levantamento nacional de música tradicional, Virgílio Pereira
(Cancioneiros de Arouca, Cinfães e Resende, contribuições importantes para o
cancioneiro raiano, recolhas musicais na região da Covilhã e outras a cargo da
Fundação Calouste Gulbenkian), Fernando Lopes-Graça (Beira Baixa e Alentejo), Artur
Santos (Beira Baixa, Beira Alta e Açores) e Ernesto Veiga de Oliveira, autor do mais
importante estudo organológico do nosso país, com gravações resultantes da pesquisa de
campo. De entre todos importa destacar, por nunca ter conhecido publicação e, talvez por
isso mesmo, ser o mais esquecido, o trabalho de Armando Leça. Foi este musicólogo
encarregado em 1939, pela Comissão dos Centenários, de efectuar gravações da música
que o povo português tocava e cantava na altura, gravações que se destinavam a
publicação posterior. |
Armando Leça veio a realizar
registos sonoros em todas as províncias do território continental, os quais porém nunca
foram conhecidos do grande público até 1983, altura em que, após buscas na antiga
Emissora Nacional meritoriamente efectuadas por Bernardino Pontes a nossas insistências,
foi possível encontrá-los, transmiti-los e comentá-los através do programa
«Cancioneiro Popular», de que éramos autor. Temos tentado, ao longo de todos estes
anos, obter condições para uma edição pública desses registos, mas só agora, passado
tanto tempo e esforço, parece estarmos finalmente em vias de ver esse objectivo
concretizado.
A importância das recolhas de A. Leça é crucial, já por abrangerem todo o
território (de Portugal continental, repita-se), já por terem sido realizadas há 60
anos, já por constituírem o primeiro levantamento músico-popular no nosso país. |
|
«Lato»
(Paradela/Mirandela do Douro) |
São, pois, referência
obrigatória para avaliação das investigações ulteriores, visto que é um dado
adquirido que, embora não publicadas em som, elas eram do conhecimento dos pesquisadores
que lhe sucederam. Só conhecendo minimamente as obras dos investigadores pretéritos e
nomeadamente os registos fonográficos que efectuam nos respectivos trabalhos de campo
será possível avaliar as contribuições dos pesquisadores subsequentes e os avanços e
desenvolvimentos da investigação etnomusicológica em Portugal. |
Por essas razões, as recolhas de A.
Leça são, por assim dizer, uma base de estudo essencial para quem se dedique à
investigação no terreno e bem assim para quem queira analisar criticamente as obras dos
investigadores que lhe sucederam no tempo. |
|
A análise destas obras, pois,
exige sempre uma perspectivação histórica e comparativa em relação às
investigações antecedentes. Assim enquadrado o problema, será fácil reconhecer se a
gravação de um determinado investigador em certa aldeia ou região é uma verdadeira
descoberta da sua investigação, ou se é apenas a repetição de outras que outros
investigadores fizeram em épocas transactas, caso em que o seu interesse se limitará a
permitir-nos compará-las e assim avaliarmos a evolução da tradição musical durante
aquele período de tempo.
Posto isto, passemos à obra de Giacometti agora reeditada, a qual conheceu a 1ª edição
- recordemo-lo - na década de 60 e princípios de 70, em 5 discos vinil de longa
duração, pela seguinte ordem: 1º Trás-os-Montes; 2º Algarve; 3º Minho; 4º Alentejo;
5º Beiras. A reedição de agora, em 5 CD, não se apresenta por esta ordem e não nos
fornece as datas das primeiras edições, o que é pena.
Foi esta antologia o fruto das primeiras pesquisas que Giacometti realizou em Portugal.
Pôde contar com a preciosa colaboração de Fernando Lopes Graça, patente na selecção
dos trechos musicais e na análise musical dos mesmos. A reedição conservou as palavras
explicativas de Giacometti e os importantes textos de Graça. Embora não comporte as
fotografias da pesquisa, que muito a enriqueceriam, incluiu as letras dos cantos, sempre
importantes para uma melhor compreensão e acompanhamento. |
É muito de louvar esta reedição dos
célebres «discos de serapilheira», que na altura alcandoraram Michel Giacometti a um
lugar destacado na etnomusicologia portuguesa. Foi desde logo o impacto fortíssimo do
primeiro disco da série, dedicado a Trás-os-Montes, que trouxe aos intelectuais
citadinos tradições e sons longínquos de um campo que inteiramente desconheciam. |
|
Para além das ressonâncias
arcaicas da gaita-de-foles, o que mais impressão parece ter causado foram os romances
colhidos nas regiões de Bragança e Miranda, cuja ancestralidade remonta a uma sempre
mítica idade medieval. |
Seguiu-se-lhe o disco do
Algarve, onde o romanceiro ocupa também lugar de relevo, com destaque especial para três
belíssimos exemplares registados em Aljezur. O disco abre com um espantoso canto de alar
as redes, gravado dos pescadores de Portimão, a quem Giacometti dedica a própria
edição.
A província do Minho foi a terceira contemplada pela Antologia da Música Regional
Portuguesa, mostrando-nos exemplares polifónicos de grande riqueza, provenientes
sobretudo da zona setentrional e das serras do Gerês e do Soajo. O disco do Alentejo, o
quarto, revelou, a par dos cantos corais - já nessa altura bastante conhecidos, como
reconhece Lopes-Graça -, um extraordinário aboio (canto de incitamento ao gado), alguns
valiosíssimos cantos religiosos e fragmentos do Auto da Criação do Mundo, dos
Bonecreiros de Santo Aleixo, de grande interesse e maravilha.O último
disco, publicado já na década de 70, foi dedicado às Beiras e constituiu nova
revelação, sobretudo por virtude da riquíssima polifonia da Cova da Beira e também da
polifonia de Lafões, sem esquecer os cantos ao adufe, de sabor tão arcaico e as
impressionantes cantiga da ceifa e da roda, esta característica das margens do Zêzere. |
|
Sarroncas
(Campo Maior/Elvas) |
Com os distanciamento de 30
anos sobre as primeiras edições de Giacometti e com o conhecimento das pesquisas
anteriores, nomeadamente de A. Leça, que, à época, a nossa geração (e mesmo as mais
velhas, com algumas excepções meramente individuais) inteiramente desconhecia, há agora
condições de fazer uma breve apreciação histórica às recolhas musicais que a
Portugalsom em boa hora devolve a público.
Temos vindo a referir com insistência o nome de Armando Leça por duas ordens de razões:
em primeiro lugar porque o seu levantamento pioneiro, por ser o único de âmbito nacional
é também o único que poder servir de termo comparativo com o levantamento de Michel
Giacometti; e em segundo lugar, porque o cotejo dos dois trabalhos revela pontos comuns
absolutamente surpreendentes, que conduzem a considerar que foi Leça o investigador que
primeiro captou algumas das preciosidades musicais que trinta anos depois Giacometti
também registou, frequentemente coincidindo os próprios locais de colheita.
|
Citemos o caso das recolhas
transmontanas, tanto da região de Miranda, como de Vinhais; algumas coincidências menos
persistentes no disco do Alentejo; o caso da polifonia da Cova da Beira e da polifonia de
Lafões, por vezes com recolhas nas mesmas aldeias, como Roças do Vouga ou Manhouce; e,
por fim, o exemplo bem localizado de leva-leva, gravado aos pescadores de Portimão, com
trinta anos de distância.
É curioso notar que Giacometti nunca cita o nome ou o trabalho pioneiro de A.
Leça, nem sequer como base da sua pesquisa (o que faz, por exemplo, em relação a
Virgílio Pereira e Gonçalo Sampaio no disco do Minho). |
|
Banjolim
(Lisboa) |
E, no entanto, é um dado
adquirido que ele possuía uma cópia das gravações de Leça e sempre teria delas
conhecimento através do livro Da Música Portuguesa cujo apêndice, denominado Discoteca
da Música Popular Portuguesa, é precisamente a discriminação, espécie por espécime,
aldeia por aldeia, dessas gravações. Doutra forma não se explicam as citadas
coincidências, reveladoras do conhecimento prévio dos caminhos palmilhados por Leça.
|
E se este aspecto, sobretudo a
omissão de qualquer referência à pessoa e ao trabalho de Armando Leça, ensombra e
relativiza a obra de Giacometti, não lhe retira o valor das pesquisas inéditas que
ressaltam nos discos do Algarve, parte do Alentejo e sobretudo do Minho, embora aqui se
tenha baseado em Virgílio Pereira, como ele próprio assinala, atribuindo-lhe mesmo o
mérito de primeiro descobridor de algumas das «puras jóias» que publicou. Além
deste aspecto, que é, digamos, de ordem ética, importa fazer uma abordagem crítica
geral da temática seleccionada nos discos de Michel Giacometti. Ao verificarmos que quase
exclusivamente contêm cantos de trabalho e cânticos religiosos tradicionais, é
inevitável a pergunta: onde está a música bailada, onde estão as modas coreográficas
com que o povo bailava, onde estão os viras, as chulas, o malhão, o fandango, a xotiça,
a moda de dois passos, as danças de roda, o fado batido, o verde-gaio, etc., etc., etc.?
|
|
Guitarra-lira
(Lisboa) |
Concomitantemente, constata-se
a ausência dos principais instrumentos tradicionais portugueses. Tirante o adufe, não se
ouve a guitarra e a viola portuguesas, o cavaquinho, o acordeão diatónico (seja a
«concertina» seja o «harmónio», este aparecendo representado, mas apenas num pequeno
trecho musical), o que naturalmente empobrece a obra em análise no que respeita à sua
representatividade. Quem é o minhoto que se reconhece numa mórbida melopeia de
carpideira, ou num conjunto de cantos donde está ausente um vira, um malhão ou uma
cana-verde, ou numa selecção musical sem violas, cavaquinhos ou concertinas?
|
O ludismo, o amor e o divertimento são
uma componente essencial da via do povo que, obviamente se reflecte na sua música,
aspecto que não está inexplicavelmente espelhado nesta amostragem da música regional
portuguesa. |
|
Estamos hoje sem saber se isto
correspondeu a uma opção do próprio Giacometti no terreno, se resultou da selecção de
Fernando Lopes-Graça. O que podemos adiantar é que Lopes-Graça quando, nos últimos
anos da sua vida, contactou com as nossas recolhas da Estremadura para prefaciar o livro
que se espera saia em breve, ficou encantado com a quantidade de modas bailadas em registo
e com a variedade dos instrumentos que as suportavam. Em qualquer caso, é inegável que
se tratou de um critério de preferência por aquilo a que poderemos chamar de exotismo
musical, que correspondeu a uma orientação deliberada de uma determinada época e que,
como tal, deve ser estudada e respeitada.
É nesta perspectiva fundamental que se torna da maior importância a reedição da
Portugalsom, a qual irá finalmente tornar acessível a muitos portugueses as míticas
gravações de Giacometti (as tiragens da 1ª edição, aliás variáveis, não
ultrapassaram as escassas centenas). Mas é também com a visão crítica que muito
perfunctoriamente abordámos que as recolhas destes discos devem ser apreciadas e
historicamente situadas, para que saibamos enquadrar a obra de Michel Giacometti em toda a
história da investigação etnomusicológica em Portugal, a qual teve os seus primórdios
no princípio do século. José
Alberto Sardinha no Jornal Expresso |
|