Recolha
Catarina Chitas
Uma lição para escutar e aprender
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Por: Domingos MoraisFoi
editada uma obra fundamental da cultura popular portuguesa. Vários registos de Catarina
Chitas, quase perdidos algures numa cassete audio, foram agora recuperados para CD. Uma
obra que fala e canta por si - fundamental e indispensável.
Catarina Sargenta, a Ti Chitas para todos os que tiveram o privilégio de com
ela privar, nasceu em Penha Garcia, Concelho de Idanha a Nova, a 30 de Janeiro de 1913.
Este CD é uma lição para quem a souber escutar e quiser aprender. A sua
publicação pelo Festival Internacional Cantigas do Maio, na sua XIII edição, visa
também homenagear uma das mais distintas cantoras portuguesas de sempre.
Na faixa nº 3 deste CD pode-se ouvir uma canção autobiográfica composta e
musicada por Catarina Chitas, onde nos diz:
Toda a vida fui pastora / e sou muito de
vontade
Eu nasci pra camponesa / não foi pra ir prà cidade
Guardo as minhas cabrinhas / é uma vida que me encanta
Eu nasci pra pastorinha / não foi para ser estudanta
Guardo as minhas cabrinhas / é a minha profissão
Sempre cantando e rindo / estudando a minha canção
Estudando a minha canção / com prazer e alegria
Guardo as minhas cabrinhas / no rochedo de Penha Garcia
Guardo as minhas cabrinhas / com bom leite e bons queijinhos
Passo o meu resto do tempo / a brincar com os chibinhos
E a brincar com os chibinhos / é uma vida que é modesta
O la lai lari ló léla, / não há vida como esta.
Os primeiros registos conhecidos de Catarina Chitas terão sido feitos por
Ernesto Veiga de Oliveira e Benjamim Pereira em 1963. Muitos outros registos se foram
fazendo, dos quais merecem referência: os de Michel Giacometti em 1970, para a série
produzida pela RTP Povo que canta, publicado em 1970/1996 - Antologia da
Música Regional Portuguesa. Beira Alta. Beira Baixa. Beira Litoral; em 1982 por José
Alberto Sardinha, em Recolhas da Tradição Oral Portuguesa Beira Baixa e
Minho, e em 1997, em Portugal Raízes Musicais nº 4 Beira Baixa e
Beira Transmontana; em 1991, a Câmara Municipal de Idanha a Nova edita um LP com 17
faixas, inteiramente dedicado a Catarina Chitas; em 1992, é editado na Collection
Dominique Buscall o CD Music du Monde Portugal: Chants et tambours de Beira
Baixa, em que Catarina Chitas canta em nove faixas; em 1994, um CD concebido e
realizado por Jacques Erwain, Voyage Musical Portugal Le Portugal et les
Iles , que além de incluir duas gravações de Catarina Chitas, tem um depoiamento
gravado onde nos diz: Daqui de Penha Garcia, fala Catarina Chitas. É uma pessoa que
não tem estudos nenhuns. Fui criada no campo, a guardar gado, a guardar tudo, a guardar
cabras, e porcos, e vacas. E a trabalhar, a ceifar, a sachar o trigo, a arrancar o mato, a
fazer tudo. A minha sabedoria é essa. Agora, de então para cá, já fui cozinheira, já
fui padeira, já fui tecedeira, já passou tudo pelas minhas mãos. Só estudos da Escola
é que nunca tive.
Muitos outros registos foram feitos, por músicos amadores, estudantes,
investigadores e estudiosos, sempre bem recebidos por Ti Chitas que com infinita
paciência repetia histórias e canções, convidando-os para sua casa onde lhes dava de
comer e por vezes guarida até ao dia seguinte. Foi assim que um dia, acompanhado pela
Teresa e pelos nossos filhos Pedro e Tiago, depois de termos conversado e gravado, comemos
um frango frito e uma salada de tomate que não mais esquecemos. Muitas destas gravações
eram meros registos que nos permitiam recordar e transcrever para os nossos trabalhos o
que tínhamos aprendido. Não havia o propósito de vir a editar as gravações, e por
isso usava-se equipamento amador.
Foram essas as fontes a que recorremos na escolha dos fonogramas que fazem parte
deste CD, e que talvez nunca viessem a ser publicadas pelos defeitos técnicos de
captação que terão, mas que o tempo se encarregou de mostrar serem secundários
atendendo ao conteúdo nelas revelado.
As faixas nºs 24 e 25 (O Pai da Laurinda e Parabéns e Serenata aos Noivos)
foram gravadas por Ernesto Veiga de Oliveira e Benjamim Pereira em 1964. As faixas nº 7 e
23, forma gravadas por Domingos Morais em 30 de Novembro de 1982, quando Catarina Chitas
participou na festa da 2ª edição do livro de Veiga de Oliveira, Instrumentos
Populares Portugueses.
Registe-se a participação de Veiga de Oliveira e de Benjamim Pereira no
esclarecimento das canções apresentadas. As restantes faixas fazem parte do acervo da
Linha de Acção de Recolha e Estudo de Literatura Popular Portuguesa, hoje designado por
Centro de Estudos Prof. Viegas Guerreiro, da Faculdade de Letras de Lisboa, e foram
gravadas em 1985 no âmbito do projecto de que resultou a publicação Romanceiro
Tradicional do Distrito de Castelo Branco, coordenado pelo Professor Pere Ferré.
Manuel Moreira, o Ti Manel Moreira que acompanha Catarina Chitas nas faixas 24 e
25, era um notável executante de viola beiroa. Dele apenas sabemos o que Benjamim Pereira
registou no seu texto Relato acerca da organização da colecção de instrumentos
musicais populares portuguesas, na 3ª edição de Instrumentos Musicais Populares
Portugueses, de Veiga de Oliveira (2000), pp. 30/31, e que transcrevemos:
Em 1964, por ocasião do I Congresso Nacional de Turismo, a Fundação
Gulbenkian levou a efeito, com a nossa colaboração, mais uma exposição sobre os
Instrumentos Musicais, que contou também com um concerto de tocadores e cantadores
populares. A Região da Beira Baixa esteve representada pela tocadora de adufe, Catarina
Chitas, que nessa altura nos falou do Manuel Moreira como sendo o último tocador de viola
daqueles sítios. Ele vivia no flanco da serra do Ramiro oposto ao de Penha Garcia, o que
nos obrigou a contornar essa serra.
O percurso alongou-se, fez-se noite, a estrada deu lugar a uma vereda que o
velho citroën 2 cv a custo vencia, com coelhos bravos a saltar à nossa frente, e a toda
a volta o silêncio e o negrume total. No momento da desistência lobrigámos uma luzinha
saí do carro e gritei por ajuda para encontrar o Tio Manuel Moreira. Como por
encanto, lá do alto uma voz respondeu: "É aqui"! Subimos a encosta e fomos ao
seu encontro.
Foi como se já nos conhecêssemos de há longos anos. Apesar de nunca ter
saído desse pequeno mundo rural, de não conhecer sequer Castelo Branco, prontificou-se
de imediato a ir a Lisboa, dado ir na companhia da Catarina Chitas. Evoco a sua entrada no
palco, de calças de bombazina e faixa preta, um sorriso confiante e sereno, a sua
belíssima execução musical. Depois de terminar despediu-se do público com um gesto
profundamente natural e afectivo, secundado pela saudação "Deus vos abençoe".
Domingos Morais