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1.Alvorada 2.Jota 3.Picado 4.Moda de Ronda 5.Pasodoble 6.Fandango 7.Bendito e Louvado Seja 8.Loureiro 9.ASaiadaCarolina 10.Laurindinha 11.Modade Arraial
Gravação: 23
de Janeiro de 2000 em Deilão
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Dossier Sons da Terrra
Eduardo Francisco Veiga
Gaiteiro "Dias" - Deilão
BragançaA freguesia de Deilão fica situada em plena
região da Alta Lombada, uma área de planalto situada a 800 metros de altitude, a poente
de Bragança, - confinante com a Espanha, delimitada a nascente pelo Rio Maçãs, a norte
pela Ribeira de Pereira e Cerro de Deilão e a sul pela Ribeira de Réfega - e integrando
as aldeias de Babe, Palácios, Caravela, São Julião, Vila Meã, Deilão, Petisqueira,
Guadramil e Rio de Onor, as quais se alinhavam ao longo da chamada Estrada dos
Castelhanos, a velha estrada romana que levava até Astorga e que foi traçada pelos
romanos (confrontados com a hostilidade das tribos celtas e de outras ermas instaladas na
região) para isolar os povos dos castros defensivos crigidos nos pontos mais altos (foram
mesmo aniquilados os castros de Sapeira e do Castrico).
Terra de remoto povoamento - o Abade de Baçal (Baçal, 1975:682) refere o aparecimento de
testemunhos datados do neolítico (Junto à povoação de Deilão apareceram enterradas,
quando surribavam o terreno, seis manilhas de cobre para trazer nos pulsos ... ) - Deilão
tem um modo de vida que a pax romana fez transitar da Idade Média, profundamente
associado às actividades agro-pastoris. Facto que nos surge evidenciado pelas
Inquirições, nas quais se refere a existência em Gimonde, Vila Meã e Deilão de formas
de ocupação e de exploração da terra emergentes de tempos medievos (Afonso, 1989:161):
São divisões diferentes que o povo fez no ager publicius. Ainda hoje existem os terrenos
baldios, os prados, que os concelhos medievais reservaram, onde o cabaneiro podia cortar
lenha, guardar o gado ou apanhar caça. Os moinhos, a forja e o lagar, por vezes
comunitários, prolongam até hoje uma forma de economia comunitária, onde a
solidariedade, a que antes se chamava comunitarismo, supria as carências económicas de
quem aprendeu a viver com pouco. A vinha, algumas oliveiras, a castanha, a criação de
gado, o pombal, correspondem a uma ocupação do solo que desde as gerações mais remotas
quase não sofreu interrupção.
E teria sido justamente em torno das formas de propriedade e respectiva
ocupação - ao lado das vilas, surgem aqui também designações como os vilares, os
casares, as quintas e as quintelas - que, de acordo com as investigações de José Leite
de Vasconcelos (Vasconcelos, 1901:49), talvez o étimo Deilão - Deylam, Deilam, Deylan
pelos anos 1258 - esteja no nome latino Dellius, com o sufixo anus (Delianus),
prescisamente para indicar a propriedade (fundus) de Dellio.
A Festa Colectiva
A riqueza e a diversidade das tradições musicais da Lombada encontra-se estreitamente
associada à vida das gentes da região, com uma "estação de festas" centrada
na época natalícia (no chamado "ciclo dos doze dias", do Natal aos Reis).
Nestas ocasiões, o profano e o sagrado convivem e confundem-se, nelas se evidenciando
"um gosto inato pela festa" não raro associado a "raízes de
sobrevivência" do comunitarismo (tais como o "gado do povo" e a
"reunião do concelho", ainda hoje prevalecentes em Deilão) e de práticas de
gentilico paganismo.
Mas um dos eventos mais mercantes desta realidade festiva associada ao modo de vida das
gentes eram, sem dúvida, os "fiadeiros", que se realizavam depois das colheitas
(mais ou menos entre finais de Setembro e princípios de Outubro, em função das
condições climatéricas registadas) com as gentes da aldeia reunidas em torno de uma
fogueira, com as mães e as filhas casadoiras a fiar, alternando o trabalho com alguns
divertimentos e muitas cantigas (não faltando o aparecimento da "mula",
protagonizada por dois ou três rapazes, cuja função era a de acabar com o fiadeiro e
propiciar a festa e o divertimento). Fiadeiros estes que nunca foram do agrado das
autoridades eclesiásticas, as quais nunca se pouparam a esforços no sentido da sua
irradicação das aldeias transmontanas, confonne consta, por exemplo, de uma pastoral
datada de 18 de Dezembro de 1755, do Bispo de Bragança e Miranda, D. Frei João da Cruz,
na qual se proíbe os fiadouros públicos que sefazem de noite, assim nas ruas como nas
casas, por serem,ajuntamentos de homens e mulheres...
Outro dos eventos festivos mais mercantes da região da Alta Lombada são, sem qualquer
dúvida, as Festas dos Rapazes ou Festas de Santo Estêvão, também elas
"merecedoras" das disposições condenatórias das autoridades eclesiásticas,
como foi o caso de D. Frei João da Cruz, do mesmo modo proibindo na citada pastoral as
chamadas Festas de Santo Estêvão, por se comporem de pandorcas, danças, algazarras e
tumultos ocasionados pela eleição de um rei e outras mais dignidades que nelas elegem,
por cuja ocasião tem havido mortes e pendências pelos excessos de comes e bebes que nos
ditos dias se fazem.
Como é sabido, proibições como esta e muitas mais que se seguiram não lograram vencer
a determinação das gentes, que continuaram a fazer as suas festas, com muito
divertimento e muitos comes e bebes. Estas refeições comunitárias desempenhavam mesmo
uma função de evidente libação, naturalmente radicando em práticas reconhecidamente
pagãs, conforme o referiu Antônio Pinela Tiza (Tiza, 1987:30):
Estaremos perante resquícios do antigo convivium pagão das festas solsticiais, em honra
de Baco, Saturno ou Jano, mais tarde cristianizadas e transformadas no "grande dia da
fraternidade " pelas confrarias religiosas em tempos medievais. O hábito pagão do
convivium e das refeições em comum terá sido um dos costumes mais duráveis a
sobreviver na sociedade cristã.
E, no contexto musical em que nos movemos, nem o popular gaiteiro escapou, tendo mesmo
sido expressamente visado na citada pastoral de D. Frei João da Cruz: Que da porta da
igreja para dentro não toque gaiteiro nenhum a gaita.
Mas era a festa, cumprindo uma função de vital importância no contexto das comunidades
rurais, que estava em causa e o povo não estava disposto a transigir com tais
proibições: abundam os exemplos de resistência e de oposição, continuando a cantar-se
com entusiasmo quer na igreja quer nos fiadeiros, continuando a gaita de foles a acordar
as gentes, acompanhada pelo "bruído" do "bumbo", para logo mais se
integrar na procissão ou se fazer ouvir aquando do Beijar do Menino na Missa do Galo. Era
a festa - porventura com o seu ponto mais intensamente vivido aquando das Festas dos
Rapazes, com as suas práticas rituais comunitárias, passando pela eleição das
respectivas autoridades, pelos ritos de iniciação dos rapazes, pelas alvoradas, rondas e
bailes, pela "calaça@' - com razões de ser muito fortes, num período ciclicamente
renovado, cumprindo funções sociais que Belarmino Afonso (Afonso, 1981:35) nos descreve
de forma assaz expressiva: Em Babe, S. Julião, Deilão e Vila Meã, na quase totalidade
das aldeias da Lombada, há uma "estação dasfestas ". A começar nos Fiéis
Defuntos e a terminar em S. Sebastião, asfestas são contínuas. Caem num tempo morto. A
natureza enfraquece, a vida extingue-se, caminha-se para um reino de sombras. É
necessário propiciar os deuses, afastar a morte bem simbolizada nas arvores despidas, no
céu pardacento. É preciso esconjurar a fome, eliminar o caos. À fome opõe-se a
abundância fugaz de uma vitela comida em dois ou três dias. Ao caos é preciso contrapor
o cosmos, sinónimo de ordem e simbolizando um princípio de autoridade - o rei, o
meirinho, o juiz.
O Gaiteiro de Deilão
No contexto da generalidade das festas da aldeia de Deilão, bem como de outras terras (e
não apenas nas Festas dos Rapazes), o gaiteiro desempenha tradicionalmente um papel de
enorme relevância, sendo mesmo considerada im scindível a sua sen a - Festa sem iteirio
não é
festa, dizia-se com toda a propriedade - e quando não o havia na aldeia ou estava ausente
para a prestação do respectivo serviço militar recorria-se mesmo aos gaiteiros de fora,
como o Maça, da Petisqueira, ou das vizinhas aldeias espanholas (de Riomanzanas
costumavam contratar um gaiteiro que tocava por música, que vinha de véspera e ao qual
pagavam com grão de bico).
Eduardo Francisco Veiga (que nasceu em Deilão em 1940) - também conhecido como o
"Gaiteiro Dias" ou "Gaiteiro de Deilão" - recordou-nos que nos seus
tempos de rapaz ficava fascinando com os gaiteiros espanhóis que vinham tocar na aldeia
(tais como o Gaiteirim, de Riomanzanas; o gaiteiro de Figueruelas; o gaiteiro de Moldones;
o gaiteiro Juan Priêto, da aldeia espanhola de Rio de Onor): Os gaiteiros espanhóis
vinham cá tocar e toda a gente gostava muito deles. Eram recebidos na terra como gente
muito importante e eu também queria ser assim. E aproveitava todo o tempo para os ver a
tocar e foi assim que aprendi. Tinha de ser assim porque por aqui não havi(] ninguém
para ensinar a tocar gaita de foles.
A vontade e a detertninação em ser gaiteiro era enorme e necessidade aguçou-lhe o
engenho: adaptou a uma bexiga de porco uma ronca, uma ponteira e um soprete feitos de
"caneleiro" (uma variedade de cana da região) e deu início à aprendizagem.
Tarefa difícil, porque com um fole daqueles era coisa para muito sopro e pouca música.
Durante muitos anos, Eduardo Francisco Veiga utilizou uma gaita de foles galego-sanabresa,
adquirida em segunda mão ao Gaiteirim de Riomanzanas. Não deixa de ser curiosa esta
"miscigenação" organológica, de algum modo reflectindo interacções
culturais de remotas origens (de realçar que na gaita dita sanabresa todos os respectivos
componentes são maiores do que na galega, sendo tradicionalmente utilizada na Sanabria,
Carballeda, Aliste e zonas raianas de Trásos-Montes e, com uma escala de mi modal,
proporciona uma sonoridade caracteristicamente ambígua: 'I@ de tom a menos, nos graus 3',
6' e 7').
A ronca da velha gaita do Gaiteiro "Dias" exibe diversas abraçadeiras de metal
zincado, porque a madeira rachou em vários locais; e a ponteira já levou diversas
camadas de verniz, porque o suor das mãos sempre foi fazendo estragos. Mais recentemente,
Eduardo Francisco Veiga adquiriu em Bragança uma gaita galega, que tocou durante toda a
sessão de gravação, com um fole que guarda melhor o ar porque com a outra já me custa
muito tocar Ainda faz os palhões, mas quanto às palhetas a vista que fraqueja e a mão
que treme obrigam-no a mandá-las vir de Riomanzanas.
Eduardo Francisco Veiga é o último gaiteiro tradicional de Deilão, facto que não deixa
de lamentar, manifestando-se bastante descrente quanto à possibilidade de alguns dos
rapazes da
terra se vir a interessar o instrumento e desse modo garantirem a continuidade da
tradição até agora assegurada pelo popular gaiteiro "Dias". A menos que por
lá apareçam de novo os gaiteiros espanhóis para animarem as festas da aldeia, ninguém
mais poderá dizer: Toca gaiteiro, se não não ganhas as castanhas!... Mário Correia |