Guarda
Canções do Ceguinho II
O regresso
Guarda, Café-Concerto do Teatro Municipal, dia 21 de Junho 2007, 22h
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. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Cinco anos volvidos sobre o primeiro espectáculo Canções
do Ceguinho de César Prata, regressam as histórias de faca e alguidar - as
canções que povoavam o universo sonoro das feiras e romarias, desta feita com outros
instrumentos, novos arranjos e novas histórias.
A mãe que matou os três filhos à machadada; a costureira que descobriu que o
noivo a enganava e se matou no dia do casamento; a Maria da Graça que foi enganada pelo
Manuel Celestino e atirou o filho recém-nascido para o telhado; o coveiro de Pínzio que
desenterrava os mortos para lhes tirar a roupa.
Estas e muitas outras histórias serão cantadas no próximo dia 21 de Junho, pelas 22
horas, no café concerto do Teatro Municipal da Guarda. Um espectáculo de César Prata
César Prata (adufe, concertina, kazoo, samples, sanfona, viola, viola beiroa , viola
toeira e voz).
Cegos papelistas
Vem de muito longe a memória dos cegos papelistas que, por
mercados, feiras e romarias, apregoavam casos estranhos, sucessos inauditos, virtudes
hagiográficas e relatos noticiosos, às vezes prognósticos e adivinhações. Tirando
partido do lugar de sapiência e justeza que ao cego se atribui, anunciavam matéria
oscilante entre a mistificação e a informação, entre a crendice e o pitoresco
informativo, entre os casos conhecidos e as tragédias de folhetim, por vezes ao som rouco
do harmónio ou da rabeca. Em tempos mais recentes, até os sucessos musicais e os êxitos
popularizados pela rádio e pela tv davam matéria prima, de mistura com outras
histórias, a estes bardos da era mediática, menos do lado da poética do espanto dos
seus antecessores do que de uma lógica do reconhecimento com que interminavelmente
replicavam os seus objectos.
Os cegos papelistas do século XVIII vendiam as histórias impressas em folhetos de papel
barato, com letra miúda de má qualidade, por vezes com umas quantas imagens a alimentar
o fascínio das palavras que contavam histórias em versos de pé quebrado, pouco férteis
nos mecanismos estruturais e votadas a fazer permanecer receitas testadas e de sucesso
garantido. Os cegos cantores do século XX seguiam a mesma receita, com as letras das
músicas e as fotografias das estrelas do momento à mistura. Uns e outros deram origem
àquela quantidade imensa de objectos escritos que atestam a vitalidade da cultura pobre e
que a cultura rica (o binómio é de Arnaldo Saraiva) despromoveu. São por isso raros os
exemplares que testemunhem dessa memória. E se os mais antigos ainda se encontram em
bibliotecas especializadas, de acesso restrito, constituindo o corpus da literatura de
cordel, os folhetos mais recentes foram certamente menos bafejados pela sorte. As letras
das músicas ficaram perdidas na voragem do mundo do espectáculo, todos os anos novas e
esquecidas logo depois. Uns e outros sem alcançarem a dignidade literária e sem se
acolherem ao estatuto do autor para sobreviver na memória do sistema cultural.
Quanto ao cego, papelista e cantor, não será demais dizer que o século XX assistiu
(quase) indiferente às profundas mutações que a sua figura sofreu e que levaram ao seu
inelutável desaparecimento. Resta-nos o seu lugar central no imaginário colectivo, onde
a expressão artística e criadora tem sabido, hoje como no passado lembrem-se as
fantasias românticas sobre o papel do bardo na construção da identidade das nações
, reencontrar a personagem na sua mais autêntica presença, e assim tem permitido o
nosso reencontro com as raízes da cultura e com as margens quase submersas do nosso
imaginário. Não resisto a apontar como exemplar o Rio do ouro, de Paulo Rocha (1998),
onde José Mário Branco canta o romance do filme com versos de Regina Guimarães,
acompanhado pelo rapaz da rabeca. O encontro que neste espectáculo se concretiza abre
também, à sua maneira, as portas de ingresso e de regresso a esse imaginário de coisas
perdidas, de sucessos e crenças, de histórias cantadas e contadas pela voz funda e
luminosa do cego.
[Texto de José Alberto Ferreira publicado
originalmente com o CD "Canções do Ceguinho", editado em Maio de 2003]