Porto Alto
ou a viagem pelo país do Pão, do Azeite
e do vinho
Texto: Rui Monteiro
«Em busca de antepassados da canção da nossa gente», diz a letra de «Fado
Nascente», que Rão Kyao gravou em 2001, num disco que é uma viagem pelo território
mítico da canção popular de Lisboa. Agora, três anos passados, Rão Kyao inicia, com
«Porto Alto», seu novo álbum de originais, outra viagem, a viagem de um sonho inspirado
pela música de Portugal.
Nos 17 discos que editou antes de «Porto Alto», Rão Kyao mostrou o que havia
de comum entre músicas de linhagens tão aparentemente diferentes como a portuguesa e a
indiana, inspirou-se nos ritmos da música do Nordeste do Brasil, no jazz, cruzou a sua
mestria com a alma do flamenco, estabeleceu uma forte ligação com o Oriente e percorreu,
como poucos antes dele, os sons originais de Portugal.
Hoje, neste disco, esse espaço a que Kyao chama Porto Alto é, mais que o
território físico berço de uma nação e de uma cultura, um lugar a bem dizer
mítico, inspirador de viagens e de sonhos e de sons e de palavras muito distintas,
habitado por um povo que evoluiu como os ramos de uma árvore bem enraizada na terra, a
mesma terra onde cultiva o Pão, o Azeite e o Vinho que comungamos como origem da nossa
cultura.
A rota da viagem de Rão Kyao em «Porto Alto» nasce com o Sol e evolui, como
é característico na sua música feita de tantas influências, através da troca, da
aceitação da diferença, da procura de espaços comuns. Ao longo das faixas do álbum o
som das flautas atravessa planícies, percorre montanhas, acolhe estímulos variados onde
se reconhecem lugares distantes, músicas ciganas e árabes e andaluzes misturadas com as
suas origens portuguesas. Aqui, neste Portugal de «Porto Alto», sente-se o amor e a
alegria, a dor, mas também a paixão e o trabalho que produzem o Pão, o Azeite e o Vinho
onde nasceu e se sustenta esta cultura singular na sua diversidade.
«Porto Alto» é por assim dizer uma dúzia de pontos no mapa
desta viagem. Para ser preciso, treze são os lugares, ou talvez treze estações desta
forma de peregrinação pelos sítios e pelas gentes. Decerto, pontos de encontro num
percurso determinado pela música e pelas relações que ela tece quando se deixa
contaminar pelos estímulos que persistem na memória para lá do tempo e das
circunstâncias.
Como determina o código não escrito dos viajantes (que não devem ser
confundidos com os turistas), a jornada inicia-se pela manhã. Aqui, as flautas de Rão
Kyao acordam com o Sol e, em «Saudação ao Sol», «Rodinha da Eira», «Dança dos
Montes» e «Castro Verde», acompanham o seu caminho para Ocidente, evocando a música do
interior, estabelecendo a tessitura do que nos é musicalmente comum, até arrimar no
interior português como quem precisa de pousar a bagagem e parar por um momento.
No novo alfinete espetado neste mapa, «O Luar e os Lobos», Rão Kyao evoca «a
memória fortíssima da música cigana que se ouve pela Roménia, pela Bulgária...» e
que se espalhou através das margens do Mediterrâneo. Saltando, no momento seguinte, para
outro desses «sítios onde tantas coisas se passam», «Porto de Alfama», onde a música
evoca outros tempos, levando-nos até à época das Descobertas, quando Lisboa se tornou
ponto de confluência de comércios, povos e culturas que os portugueses assimilaram e
transformaram em coisa sua.
É neste momento de «Porto Alto» que a música desenvolve a ideia central do
álbum, ou o que Rão Kyao chama: Trilogia dos Alimentos. Com «Balada do Pão», «Na
Apanha da Azeitona» e «Vinho dAlegria» é a coisa comum, a raiz da cultura que se
encontra em canções de trabalho, mas também de celebração e festa tema que de
certa maneira se encerra na reflexão interior incrustada na letra de «Lamento
Redentor».
A surpresa, e uma interrogação, marcam os dois hipnoticamente ritmados
andamentos de «Nas Margens do Guadiana» (onde Rão Kyao, como antes em «Saudação ao
Sol», é acompanhado pela guitarra desse grande mestre do flamenco que é Gerardo
Nuñez). Surpresa por «estarmos em casa» quando a música tanto evoca o norte de África
como a Andaluzia; interrogação por tão facilmente esquecermos esta identificação,
motivo aliás que conduz ao fim da viagem pelo Portugal de «Porto Alto», em «Rabela»,
tema inspirado no ritmo do folclore da Beira Alta, e em «Um Canto Transmontano», aqui
tomados como exemplos marcantes desta cultura de Pão, Azeite e Vinho.