Lançamento
Dulce Pontes
"Focus" e o som das imagens
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. . . . . . . . . ."Focus"
é o disco que reune o génio de Ennio Morricone à voz cada vez mais amadurecida de Dulce
Pontes. Uma disco que reúne alguns dos clássicos do compositor italiano e cinco peças
especialmente compostas para esta parceria.
Texto de Fernando
Magalhães, publicado no Jornal Público
Ennio Morricone e Dulce Pontes conheceram-se em 1995, durante as filmagens de
"Afirma Pereira", para o qual o compositor e maestro italiano escreveu a banda
sonora, que incluía a canção "A brisa do coração", de Francesco de Melis e
Emma Scoles, pela voz da cantora portuguesa, precisamente.
Nessa altura juraram voltar a trabalhar juntos mas o autor das
partituras de "Aconteceu no Oeste", "A Missão", "Cinema
Paraíso" e "Sacco e Vanzeti" impôs como condição que Dulce esperasse
até fazer 30 anos. Para ganhar experiência. Dulce esperou, apagou as 30 velas e Ennio
cumpriu a promessa.
E de que maneira: oferecendo-lhe um álbum inteiro com música sua.
O álbum chama-se "Focus", tem 16 canções e letras, entre outros, de Federico
Garcia Lorca, Joan Baez, Francesco de Melis, José Mário Branco, Mark Niedzwiedz, Carlos
Vargas, Phil Galdston, Audry Stainton, M. Travis e da própria Dulce Pontes, na canção
de homenagem a Amália Rodrigues, "Amália por amor". A portuguesa cantou na
língua natal mas também em italiano, espanhol e inglês. Com empenho. Interiorizando a
colaboração como um "sonho tornado realidade" e um "acto de amor",
capaz de lhe provocar o "êxtase".
Morricone, com a calma e a distanciação própria dos seus 75 anos
(40 de carreira), não poupa, porém, nos elogios impressos na capa do disco, na forma
como se refere às cinco novas composições que escreveu para o disco ("Amália por
amor", "Antiga palavra", "Luz prodigiosa", "Voo" e
"I Girasoli"): "Escrevi-as a pensar na voz de Dulce. Queria dar um ritmo
intencional a estas novas peças - chamemos-lhe um ritmo ibérico - porque queria que a
Dulce pudesse expressar o seu alcance vocal, mas também manter as conotações do fado
português (...) ela tem qualidades 'camaleónicas' tão completas, tão incrivelmente
variadas, que tenho de dizer que ela toca em todos os aspectos da canção, todas as
formas de cantar". Vai mesmo mais longe, ao afirmar que este é um dos discos
"mais importantes" que alguma vez fez "com um cantor", definindo-o
como "extraordinário".
perfeccionista. 1995 foi o ano da luz. Dulce e Ennio encontraram-se
nas circunstâncias atrás descritas e ele não a largou mais. "Começou a
convidar-me para ir cantar aos concertos dele", conta a cantora portuguesa, ainda mal
refeita desse encontro "profissional" e "pessoal" com o mítico autor
de BSO para "Western spaghettis" como "Por um Punhado de Dólares", de
Sérgio Leone. "Mantivemos contacto ao longo dos últimos anos e estivemos juntos em
várias partes do mundo, como na Arena de Verona, o Palácio dos Congressos, em Paris,
Londres, Norte da Europa...". Proximidade e afecto mútuos ao ponto de levarem Dulce
a considerar o maestro como "uma pessoa da família". Alguém que descreve como
"perfeccionista" e "com uma objectividade muito grande" em relação
às suas concepções musicais, "o que se reflecte na sua maneira de ser" - usa
muito a expressão 'dignidade artística'". "Há poucas pessoas que conservem
tais princípios ao longo da vida", reconhece, acrescentando ter estado ao lado de
alguém "acessível, sempre diposto a contar anedotas".
Dulce Pontes acompanha a música de Morricone desde a
adolescência. Cita como banda sonora preferida "A Missão". E reconhece que a
sua voz se adapta a ela com naturalidade. "Porque a música dele descreve muitas
imagens, uma música multifacetada que me permite tocar várias cambiantes da minha
personalidade e da minha voz enquanto intérprete", diz Dulce que, apesar dessa
admiração mútua, teve que esperar até aos 30 anos para retomar a ligação artística
com o mestre italiano. Mas valeu a pena a espera. "Isto acontece no melhor tempo da
minha vida. Este disco não seria nada do que é se o tivesse feito no meio do rodopio em
que eu normalmente andava. Depois, o facto de ter sido mãe fez-me ficar com mais corpo, o
que me ajuda imenso na parte técnica. E tenho hoje uma estabilidade afectiva que antes
não tinha".
Foram oito anos de espera até, finalmente, "se desbloquearem
uma série de situações", como o facto da editora querer que a cantora lançasse
mais um disco antes da aventura Morricone, o que implicou "cedências", das
quais, porém, Dulce "não se arrepende nada".
Ao fim e ao cabo proporcionaram-se as condições para
"Focus" avançar e poder contar com cinco composições novas oferecidas
"de bandeja" à cantora que em 1999 conquistou o Prémio José Afonso com o
álbum "O Primeiro Canto". "Sobretudo pela quantidade de vozes magníficas
que existem no planeta, sinto-me privilegiada por ele me ter escolhido".
"va bene, bravo!". "Focus" foi gravado no mesmo
estúdio que "Brisa do coração", no Fórum estúdio, em Roma. Durante sete
dias, "tudo de seguida", sempre com Morricone presente. "Sugeri que
gravássemos ao mesmo tempo com a orquestra mas ele não quis, preferiu gravar a orquestra
primeiro. Ouvi as orquestrações cerca de oito dias antes de ir para lá, onde
acrescentei depois a voz. Um dos temas, 'Someone you once knew', tinha um andamento muito
fixo e expliquei-lhe isso assim que cheguei ao estúdio, exemplificando. Ele percebeu de
imediato e optou por, nessa vez, gravar mesmo em tempo real com a orquestra. Deu-me total
liberdade, mas adorava que tivesse sido mais exigente comigo (risos) porque o que
acontecia, na maioria das vezes, era eu fazer dois, três 'takes' e ele comentar 'va bene,
bravo!'. Eu pedia para repetir, às vezes repetia demais, talvez por insegurança, noutras
por uma certa dificuldade em adaptar-me às mudanças de linguagem".
Agora que "Focus" aí está para ser lançado em todo o
mundo, incluindo no formato SACD (Super Áudio CD), o que acontece pela primeira vez com
um artista português, Dulce Pontes não tem dúvidas em reconhecer que se trata de um
momento único da sua carreira e que poderá ser o início de um reportório à parte,
"para cantar coisas de outras pessoas".
"Focus" tem apresentações marcadas para Roma, no mês
que vem, e para o Royal Albert Hall, em Londres. Por cá, "haja luz!":
"Adorava fazer o espectáculo antes do Natal, até porque o Ennio Morricone nunca
esteve em Portugal".
Para já, Dulce Pontes não se cansa de saborear o momento.
"Tive que me beliscar, não acreditava que estava a cantar 'A Missão'!". Nem de
rebobinar na sua cabeça um filme de que ainda não assimilou sequer "os
créditos". "Talvez por defesa. Não gosto de criar expectativas em relação a
uma coisa, como fiz no passado, e depois desiludir-me. Tenho medo disso. Embora sinta que
este foi um passo muito importante, talvez mesmo o mais importante, e que representa a
possibilidade de crescimento e de internacionalização, há coisas neste disco que talvez
gostasse de repetir, tenho sempre essa sensação. Houve momentos em que fui ainda mais
exigente que o maestro, talvez estupidamente exigente (risos)". Porque a música de
Morricone "não se pode interpretar nem só com o coração nem só com a cabeça,
tem que haver um equilíbrio delicadíssimo. Tens aqui um par de asas e agora põe-te a
voar. De repente abre-se diante de ti um precipício enorme mas sabes o prazer que podes
ter a voar".