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Virgínia Rodrigues
A nova grande Voz do Brasil
Coliseu dos recreios de Lisboa, 22 de AbrilVirgínia
Rodrigues é natural de São Salvador da Bahia, tendo sido já muitas vezes comparada com
fenómenos como o de Cesária Évora, não só pela voz única mas também pela sua
humildade e genuinidade. O facto é que Virgínia alcançou uma emorme notoriedade
internacional, frequentando as mais importantes salas de espectáculos mundiais, tendo
sido várias vezes considerada pela imprensa como "a nova grande voz do Brasil".
Já com dois trabalhos discográficos, "Sol Negro" e o recentemente editado
"Nós", vai apresentar-se pela primeira vez em Portugal, no Próximo dia 22 de
Abril, no Coliseu dos Recreios em Lisboa.
A sua carreira começou a ganhar forma quando Caetano Veloso a viu actuar com os Olodum:
"Caetano Veloso é um grande admirador dos Olodum e assistia ao ensaio geral do
espectáculo quando me descobriu", refere Virgínia Rodrigues. Caetano veloso acabou
por produzir o seu segundo álbum, tendo impulsionado fortemente a sua carreira
Internacional.
Segundo afirmou Virgínia Rodrigues ao Jornal Correio da Manhã, "Este disco tem as
suas raízes musicais na música negra, no Carnaval da Bahia - que é único no Brasil. Os
temas variam muito mas fala sobretudo da escravatura de outros tempos e da discriminação
da raça negra que ainda hoje está bem patente na sociedade, embora de uma forma mais
disfarçada. Além disso fala da forma própria que os negros têm de viver, de sentir, de
celebrar as suas raízes e da sua fé"
Portugal vai ter a oportunidade de ouvir esta grande senhora da música da Bahia, num
espectáculo de candomblés e os sambas negros, de grupos ligados ao carnaval de São
Salvador da Bahia, como é o caso dos Olodum, Ilê Ayé e Afrekêtê.
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| Crítica: Virgínia Rodrigues majestosa no Coliseu de Lisboa
A Voz do Sangue nos Olhos de Xangô
Editado por NUNO PACHECO no Jornal Público,
Segunda-feira, 24 de Abril de 2000
Teve menos público do que merecia, mas isso não lhe diminuiu o brilho. Ao longo de quase
duas horas, Virgínia Rodrigues levou ao Coliseu de Lisboa os sons mais profundos da alma
negra, filtrados pela voz do sangue e pelos olhos de Xangô, deus da justiça que, segundo
ela, tarda mas não falha. A submissão dos escravos vingada no porte majestoso de uma sua
herdeira.
O espectáculo estava quase no fim. A sala, escassamente povoada mas nem por isso menos
calorosa, ouvira e aplaudira ao longo de mais de hora e meia a voz envolvente de Virgínia
Rodrigues. Até que ela resolve voltar a cantar "Ojú Obá", dedicando-a aos
seus ancestrais ("os negros, que foram escravizados para o Brasil"), aos índios
("que não perderam a sua força"), aos brancos que tão atentamente a ouviam,
aos brasileiros que apesar das dificuldades sabem continuar a ser alegres, aos 500 anos do
Brasil, apesar de achar "que o Brasil não tem nada a comemorar".
Era o epílogo, porventura esperado, de uma portentosa manifestação de altivez e força
na voz de uma mulher que traz no sangue e na alma as marcas de dores passadas mas também
a consciência de que a justiça prometida pelos deuses vai sendo feita por mãos humanas.
Antes do concerto, ela dissera ao PÚBLICO, explicando melhor o sentido da canção:
"Ojú Obá quer dizer olhos de Xangô, que é o deus da justiça." E depois,
certeira: "A justiça tarda. Mas não falha."
De repente, ao palco do Coliseu de Lisboa, que até ali se deixara embalar por sons quase
celestiais, acorreram tormentos de décadas logo suavizados na voz que cantava "Sua
estrela vai brilhar/ meu olhar resplandecer/ reluzente Ojú Obá/ ilumine meu viver".
E, ao longe, a tensão das comemorações oficiais em Porto Seguro, os protestos dos
índios, a pressão da polícia, enquanto por cá a Banda Eva electrizava a Praça Sony
com axé aeróbico para pasto de multidões.
No Coliseu não. Ainda a sala se compunha, no desconforto de haver muito mais cadeiras do
que gente a ocupá-las, quando as luzes se apagaram para a habitual aparição dos
músicos em palco. Seis, como prometido, liderados pelo talentoso guitarrista Luis Brazil.
Virgínia Rodrigues saiu da penumbra às 22h20, aos primeiros acordes de "Canto para
Exú", manto claro sobre os largos ombros, cabeça coberta por um capuz, tudo a
acentuar um porte altivo e majestoso. E depois a voz, possante e clara, arrastando-se em
tempos lentos por sobre a música. A estranha sensação de imaginar Mahalia Jackson
nascida no Brasil e acompanhada por uns Madredeus baianos.
Mas o ritmo aqueceu. Primeiro com "Uma história de Ifá", depois com o
irresistível "Afreketé". "Sol negro", de Caetano Veloso, fez
marcha-atrás em relação ao disco anterior (o espectáculo foi baseado em grande parte
no mais recente registo de Virgínia, "Nós") e abriu caminho a um tema antigo
da dupla Vinicius-Baden Powell, logo reconhecido pela assistência: "Berimbau".
Nuno Guerreiro num "jeito" do acaso
"Jeito faceiro", que no disco apresenta um dueto com Caetano Veloso, foi o
pretexto (esperado, aliás) para a prestação de Nuno Guerreiro, que cumpriu com
sobriedade, apesar do seu registo contrastar talvez em demasia com o de Virgínia. Porquê
Nuno Guerreiro? Virgínia explicou: conheceu-o num disco da Ala dos Namorados trazido por
um amigo. "E agora tenho um grande prazer em estar aqui com este grande cantor".
É assim, destes acasos, que o futuro se alimenta.
E "Nós" continuou o seu desfile com "Ilê é ímpar"/"Depois que
o ilê passar" e "Deusa do ébano"/"Deus do fogo e da justiça",
abrindo depois novo período para reviver o anterior "Sol Negro": "Adeus
batucada", de Synval Silva; "Terra seca", de Ary Barroso" e
"Manhã de carnaval", de Luís Bonfá, com Virgínia já mais solta e livre do
manto que lhe cobria quase todo o corpo. "Milagres do povo", de Caetano, foi
outra das novidades, já que não consta de nenhum dos dois discos da cantora baiana. E
foi também pretexto para ela cantar: "Quem descobriu o Brasil/ foi o negro que viu/
a crueldade bem de frente/ e ainda produziu milagres/ de fé no extremo ocidente."
Ou: "E o povo negro entendeu/ que o grande vencedor/ se ergue além da dor."
"Negrume da noite" fez as percussões explodirem num ritmo sincopado, a apelar
às palmas, que não se fizeram esperar. Virgínia aproveitou para provar os seus dotes de
sambista, movendo-se com uma agilidade indiferente aos seus mais de cem quilos pelo palco,
e apresentando depois, um a um, os músicos. Destes, só Luis Brazil permaneceu depois em
palco para, de violão em punho, acompanhar Virgínia em "Consolação", segundo
tema de Vinicius e Baden. No final, a cantora ficou sozinha e, "a capella",
explorando as suas possibilidades tímbricas até quase ao limite, entoou um cântico a
Iemanjá, deusa/orixá das águas. Fortemente aplaudida, fez voltar os músicos e, com
estes, estreou "Se eu quiser falar com Deus", composta por Gilberto Gil para
Roberto Carlos e que este acabou por rejeitar por ser pouco religiosa. Assim: "Se eu
quiser falar com Deus/ tenho que me aventurar/ tenho que subir aos céus/ sem cordas para
segurar..."
"Malê-debalê", de "Nós", deu por encerrado o concerto em clima de
festa, com os músicos a alimentarem um ritmo contagiante e Virgínia a dançar até à
beira do palco, esgueirando-se depois, ainda em jeitos de dança, para os bastidores. Foi
de lá, aliás, que voltou para o "encore" e para olhar de frente os olhos de
Xangô, o tal deus da justiça que tarda mas não falha, enquanto deixava a sua única e
derradeira mensagem à plateia portuguesa: 500 anos, sim. Mas comemorar o quê? Nuno Pacheco/Público. |
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