1. Origens dos Instrumentos
Musicais Populares Portugueses
A Música e os
instrumentos musicais populares portugueses, tais como os conhecemos hoje, são
resultantes de um longo processo em que múltiplos contributos e influências aconteceram.
Do período
anterior à romanização da Península Ibérica, pouco sabemos sobre a música e dança
de Iberos e Celtas, e dos povos que chegavam do Mediterrâneo: Fenícios, Gregos e
Cartagineses, no 1º milénio antes de Cristo.
Estrabão, embora
nunca tivesse estado na Península, dá-nos, com base em escritos anteriores que leu e
compilou, a seguinte notícia referente aos Lusitanos (Sasportes, 1970)[i]:
"...mesmo
bebendo, os homens põe-se a dançar, ora formando coros ao som da flauta e da trombeta,
ora saltando cada um per si, a ver quem salta mais alto e mais graciosamente cai de
joelhos. Na Bastetânia (povos do Sudeste) as mulheres dançam também, misturadas com
os homens, cada uma tendo o seu par na frente, a quem de vez em quando dá a mão."
A Lusitânia era uma região cheia de contrastes. A
fertilidade e a riqueza das suas costas, celebrada por vários autores, e onde habitavam
ricos mercadores e grandes proprietários constrastava com a improdutividade e pobreza da
sua zona interior, povoada por pastores e caçadores. A música devia ser um elemento
festivo primordial nos actos da vida pública e privada dos ricos habitantes do costa,
embora sejam escassas as referências em textos históricos (Cuesta, 1983)[ii].
Diodoro de Sicília fala-nos de um tipo de dança
muito rápida dançada pelos Lusitanos em tempo de paz. Tinham ainda danças e cantos de
guerra que faziam antes das batalhas. Quando da morte de Viriato, os seus soldados fizeram
danças guerreiras e cantaram os seus feitos, o que segundo La Cuesta, nos revela a
existência de canções épicas de que apenas encontramos traços na tradição oral.
É lícito supor que, à semelhança do que acontece com
outros povos pastoris, as flautas, tambores e talvez as gaitas de foles já se tocassem,
mas não podemos ir mais longe nas suposições.
A romanização da Península, posterior às guerras com os
Celtiberos e Lusitanos (154/137 A.C.) respeitou as crenças e o culto dos povos
conquistados, dando no entanto lugar ao sincretismo próprio da colonização romana nas
suas Províncias. A iconografia mostra-nos diversos instrumentos musicais que pela sua
utilização funcional podemos agrupar em instrumentos de culto, da guerra, do trabalho,
de cenas mitológicas, de teatro e espectáculo e de dança (Fleischauer, 1964)[iii].
La Cuesta refere que as comunidades judaicas estavam já na
Península no período romano, embora sejam escassos e imprecisos os dados de que
dispomos. Já é certa a sua presença nos primeiros anos do sec.IV, em que o Concílio de
Elvira (Granada) toma várias disposições relativas às relações entre cristãos e
judeus. O culto cristão não era nas suas origens substancialmente diferente do judaico,
tendo a sua separação progressiva conservado deste o canto e a recitação de salmos,
junto com a leitura da Bíblia.
O 1º milénio da
era cristã traz à Península, após a romanização, Alanos, Vândalos, Suevos e
Visigodos, vindos do Norte e Centro da Europa. Com eles, e até ao início do domínio
árabe em 711, temos por certo a constituição de um repertório litúrgico hispânico de
grande exuberância, especialmente no tratamento dos vocalizos e dos seus numerosos
aleluias (Hameline, 1982)[iv].
Este repertório, tal como os seus congéneres
milanês e gaélico, resultou da fusão do rito romano com as tradições locais dos povos
que se converteram ao catolicismo. Coexistindo com ele, os cultos agrários e solares, das
forças naturais, das árvores, dos cereais, das águas, do fogo, dos mortos, etc, das
festividades cíclicas dos povos Ibéricos, que estão na origem de cânticos do ciclo
solar, cantos ligados aos ritos de fertilidade, prantos e cantos fúnebres, sequências e
tropos.
Os Mouros, que "nos quase oito séculos de permanência na
Península não se fundiram racial nem culturalmente com os autóctones" (Matos,
1979)[v],trouxeram-nos instrumentos, músicas e danças
que podemos encontrar nas iluminuras das Cantigas de Santa Maria e no Cancioneiro da Ajuda
(secs.XIII/XIV).
Com a Reconquista, ficaram a viver em relativa
liberdade, podendo conservar os seus costumes, leis e religião (vd.Carta de Foral de
Lisboa de 1170).
As comunidades judaicas, de há muito presentes na
Península, viveram sob o domínio mouro e depois cristão. Diz-nos Viegas Guerreiro
(1979)[vi] que eram "gente
que mal se distinguia da cristã, que falava a mesma língua e vencida de iguais
tentações", não admira que, "em
períodos normais de paz, livres da excitação doutrinária, se tenham estabelecido com
ela relações de simpatia e amizade com todas as consequencias daí resultantes".
Oliveira Marques (1980)[vii] descreve-nos as festas em que participavam judeus
e mouros, bailando, tangendo e tocando, como aconteceu quando do casamento do príncipe
D.Afonso, filho de D.João II, que ordenou que "
de tôdalas mourarias do reino, viessem às festas tôdolos mouros e mouras que soubessem
bailar, tanger,cantar...".
O Códice Calistino conta-nos como no sec.XII se
encontravam em Santiago de Compostela peregrinos de toda a Europa, entre eles músicos
tocando instrumentos das várias regiões de onde vinham. La Cuesta, embora nos alerte
para um certo cuidado na leitura do Códice, que por vezes revela mais o que seria
desejável, segundo o seu autor, do que a realidade histórica, transcreve o seguinte
excerto:
"Uns, cantavam
acompanhando-se com pandeiretas, ...tíbias, ...físulas, ...trombetas,...sacabuchas,
vihuelas, rotas britânicas e gaélicas, ...saltérios; outros, com toda a espécie de
instrumentos, ficam sem dormir toda a noite, enquanto outros choram os seus pecados,
outros recitam salmos. Ouvem-se todo o tipo de línguas ... e as canções dos alemães,
ingleses, gregos e outras regiões e gentes".
As peregrinações e, embora limitadas no tempo, as
cruzadas (1096/1270) contribuiram decisivamente para a difusão de instrumentos e
repertórios musicais na Península Ibérica.
As romarias, de âmbito mais restrito mas presentes
em todo o País, eram (e são) peregrinações populares a um lugar tornado sagrado pela
presença de um "santo", em locais de que por vezes há notícias anteriores à
formação da nacionalidade (Sanchis, 1983)[viii]. Nelas se processava a troca entre os romeiros de "modas de vestuário, composições musicais ou
coreográficas, talentos de poetas e contadores circulavam durante as romarias de uma
aldeia para a outra, contribuindo para criar unidades culturais mais largas, se bem que em
escala limitada".
Dos instrumentos musicais de que temos notícia
antes de 1500 em Portugal, referimos, nos cordofones sem braço a harpa, a lira,
a rota, a cítara,
o saltério e o monocórdio: nos cordofones com braço, o alaúde, a mandora,
a bandurra, a baldosa, a cítola,
a cedra, a guitarra e a vihuela;
todos eram tocados com os dedos ou com plectro. Nos cordofones de corda friccionada, o arco, a giga,
o arrabil mourisco, o rabel, a vihuela
de arco e a sinfonia (sanfona).
Nos aerofones, as longas, trompas
e charamelas. a exabeba (flauta transversal), o anafil, o albogue,
a flauta, o odrezinho, a pípia,
a gaita (de foles) e o orgão. Nos instrumentos de pele, o tambor, o pandeiro,
o adufe, o atabal ou atabaque.
Estes instrumentos foram tocados por Cristãos,
Mouros e Judeus, notando-se na iconografia e fontes escritas que alguns deles aparecem
ligados a uma das comunidades, o que talvez explique o seu progressivo desaparecimento com
a expulsão de Mouros e Judeus ordenada por D.Manuel em 1496, caso não se convertessem à
fé cristã. As perseguições de que foram alvo os conversos ou cristãos-novos e os
mouriscos, designações dadas a todos os que foram forçados a aceitar o baptismo, marcam
o início de um período de intolerância religiosa que iria culminar com a instauração,
em Portugal, do tribunal do Santo Ofício por bula de 1547, no reinado de D.João III.
Os primeiros cativos negros tinham chegado a
Portugal em 1441. Na 2ª metade do sec. XV chegaram ainda a Portugal os Ciganos que
também seriam alvo de proibições de entrada no reino e mesmo ordem de expulsão em 1526
(Torres, 1979)[ix]. A 1ª referencia literária a Ciganos é a Farsa
das Ciganas de Gil Vicente, talvez representada na Páscoa de 1525.
Em 1535 o humanista Clenardo escrevia: "Os escravos pululam por toda a parte. Todo o
serviço é feito por negros e mouros cativos". Avalia-se em cerca de 10.000 o
número de escravos em Lisboa, em 1551, num total de 100.000 habitantes (Miguel, 1979)[x].
Do ambiente cultural e musical no início da
Expansão, é revelador o relato dos esponsais da Infanta D.Leonor, irmã de D.Afonso V,
com o Imperador Frederico III da Alemanha, em 1451, representado nas festas e cerimónias
pelos seus embaixadores. Um deles, Lanckmann, diz-nos:
- "Vieram depois
os etiopes e mouros, com artifício à maneira de dragão, e com danças e outros
aparatos, fazendo reverência à Imperatriz"(...)
-"No 15º dia do
mês de Outubro, o sereníssimo rei de Portugal mandou fazer muitas danças na Praça
fronteira ao Palácio da Senhora Imperatriz".(...)
-"No 17º dia do
mês de Outubro, logo de madrugada, antes do nascer do Sol, vieram de uma parte cristãos,
de outra parte sarracenos, de outra selvagens e de outra ainda judeus, e cada um destes
bandos cantava, gritava e foliava na sua própria língua e maneira"
-"No 20º dia do
mês de Outubro, antes do nascer do Sol, vieram a esta praça turmas de gentes de um e
outro sexo, de diversas línguas e nações, em folgares e danças diversas".
-"No 23º dia,
veio muito povo defronte do palácio da senhora Imperatriz Esposa, com diversos
instrumentos músicos - tubas, buzinas,etc, - e dividiu-se em quatro troços: o primeiro
de cristãos, de ambos os sexos, dançando à sua maneira; o 2º, de mouros e mouras,
também à sua maneira; o 3º de judeus de um e outro sexo, no seu costume; o 4º de
mouros, etíopes e selvagens da Ilha Canária, onde os homens e mulheres andam nus,
julgando serem e terem sido, assim, únicos no mundo".
As Festas do Império do Espírito Santo e a
Procissão do Corpo de Deus, amplamente participadas pelo povo, e as sucessivas
regulamentações de que são objecto nos secs. XV e XVI, mostram-nos no entanto o
conflito sempre presente entre os costumes populares e a igreja, que de há muito se
sentia ameaçada pela persistência do que designava por "costumes gentios". A
proibição das Janeiras e Maias no reinado de D.João I daria mais tarde lugar a
tentativas de canalizar as festas pagãs para o calendário religioso. As danças que se
realizavam nos templos foram proibidas e tranferidas para as procissões, alguns dos
instrumentos musicais foram considerados impróprios de figurarem nas cerimónias
religiosas e mesmo, é-nos permitido supor, de serem tocados por cristãos.
O movimento da Contra-Reforma, de que a
Inquisição e os Jesuítas são instituições fundamentais, instala-se em Portugal com a
chegada dos Jesuítas em 1540 e o Tribunal do Santo Ofício em 1547. Os Jesuítas,
principais obreiros das decisões do Concílio de Trento, ocupavam-se em Portugal da "pregação, exercícios espirituais, obras de
caridade e, em especial, a instrução religiosa da juventude", - e da
evangelização e catequese nos territórios ultramarinos e no Oriente.
As primeiras levas de colonos são no entanto
anteriores a esta acção evangelizadora e explicam de certo modo a sobrevivência dos
antigos costumes e dos instrumentos musicais a elas ligados, por exemplo, nos Açores, com
as Festas do Espírito Santo e no Brasil, pelo uso cerimonial da viola, também nas folias
do Divino Espírito Santo.
Pensamos por isso que até meados do sec.XVI, a
música e os instrumentos musicais dos vários povos e culturas presentes na Península
Ibérica se influenciaram mútuamente, conservando cada grupo as particularidades e
identidade que lhes eram próprias, quando lhes era possível, e adoptando de outros,
mercê de condicionantes de ordem vária, o que melhor correspondia à necessária
mudança e adaptação a novas situações. Com o movimento da contra-reforma, os
instrumentos musicais portugueses, na sua forma e funções, vão-se restringindo ao que
hoje encontramos no panorama musical português e em que as excepções, devidas ao
isolamento de algumas regiões, no País e nos colonatos ultramarinos, nos confirmam que
estamos em presença de dois momentos essencialmente diferentes da cultura portuguesa.
Excepções que são sobrevivências, ou, em alguns casos, afirmação e resistencia dos
povos às proibições da igreja e do poder temporal.
O crescimento da população a partir de 1450, que
se manterá até ao final do sec.XVI é acompanhado por migrações internas do campo para
a cidade e da montanha para a planície. Acentuam-se as
áreas fundamentais que caracterizam, até aos nossos dias, o País, sob o
ponto de vista cultural.
A música e os instrumentos populares resultantes
das profundas modificações que o País vive, e que Gil Vicente tão bem descreve no
Triunfo do Inverno, lamentando o declínio da gaita de foles e do pandeiro nas terras
ocidentais, onde "já não há hi gaita nem gaiteiro", permite-nos concluir que
as particularidades das várias regiões estavam definidas no que de essencial as viria a
caracterizar, assunto de que nos ocuparemos de seguida.
2. Actualidade dos Instrumentos Musicais Populares Portugueses
Ernesto Veiga de Oliveira no livro
"Instrumentos Musicais Populares Portugueses" (1982)[xi]:, obra fundamental para o estudo da Música
Portuguesa, apoia-se na divisão que Orlando Ribeiro faz do País em Portugal Atlântico,
Transmontano e Mediterrâneo, atendendo primordialmente ao factor geográfico e às suas
relações com o homem, embora não coincidente e focando um aspecto particular[xii] e que são "o planalto alto e leste
transmontano e beirão, arcaizante e pastoril, fechado sobre si mesmo, e as terras baixas
a ocidente da barreira serrana central, do Minho ao Tejo, populosas, conviventes, abertas
a todas as influências; por fim a Sul do Tejo, o prolongamento do panorama pastoril do
planalto e no Algarve condições semelhantes às que encontramos no Norte Litoral".
Mais do que na divisão do país em províncias,
são nessas três grandes áreas que vamos encontrar, sob o ponto de vista musical,
aspectos que as caracterizam e diferenciam. Parece-nos no entanto que só podemos falar de
uma música regional se nos reportarmos a uma data anterior a 1950. Como nos diz Jorge
Dias (1970)[xiii] "... até então, cada área cultural embora
não estivesse inteiramente segregada do resto do país, vivia num relativo isolamento. Os
transportes tradicionais, quando existiam, eram caros para as economias de
subsistência". Os primeiros programas de rádio foram emitidos a partir de 1933 e
nos anos 50 são lançados no mercado os primeiros rádios a preços acessíveis, a par
com a electrificação das zonas rurais. A emigração e a guerra colonial, a
industrialização agrícola, trazem consigo profundas mudanças que alteram
significativamente as ocasiões festivas, cerimoniais e de trabalho que davam significado
à música das diferentes regiões.
Até meados do século XX as comunidades rurais
quase que só dispunham, para todos os momentos da sua vida, de um repertório próprio,
com instrumentos construídos por artífices locais, sendo as músicas aprendidas da
tradição oral.
A salvaguarda desse património local, iniciado já
nos anos 30 por Abel Viana, promotor do Rancho de Carreço (Minho), com o intuito de
"preservar a música e a dança, criando grupos de jovens que se conservassem fiéis
à tradição da sua terra", marca o início de uma nova época em que na sua maioria
os Directores de Ranchos "inventaram eles próprios o seu repertório, desde o trajo
fantasioso, até à música e à dança"[xiv]
Os cortejos folclóricos, concursos, exibições
nacionais e internacionais, foram decisivos para que mesmo as melhores intenções
iniciais se fossem adulterando, sendo muito recente, já dos anos 70, uma nova atitude de
recriar a música e a dança nos Ranchos, que segundo Ernesto V.Oliveira[xv] deverão ter consciência do que fazem, quando
querem fazer uma restituição de música ou dança de uma determinada época, o que não
os impede de inventar novas danças e músicas, ligadas ou não à sua aldeia ou região,
desde que saibam que o fazem e não fantasiem, invocando falsas origens ou refugiando-se
numa "autenticidade" que só faz sentido deste que datada e apoiada numa
investigação sólida.
Não se entenda com o que se disse que não
reconhecemos aos Ranchos qualidades e interesse na sua acção, por constituirem
inegavelmente polos de actividade regional e local onde a música e as danças ainda são
feitas por pessoas e instrumentos. Nem todos são contrafacções folclóricas e em alguns
casos pensamos mesmo estarmos perante soluções equilibradas de convivialidade e
participação comunitária, perante a mudança irreversível de um quotidiano nem sempre
fácil.
Aliás, pena é que as inúmeras edições de
"música folclórica" em discos e cassetes, de que vivem algumas grandes
editoras comerciais, não tenham ainda sido devidamente estudadas.
A permanência de formas e géneros musicais, bem
como de alguns instrumentos populares, não depende apenas das antigas funções e
actividades a que estavam ligados nas comunidades que os criaram. A procura de novas
formas e funções a que temos podido assistir um pouco por todo o país, nos grupos
urbanos, nos cantores e músicos profissionais, nos grupos locais, revela-nos que vivemos
um processo de grande dinamismo em que embora nem sempre as soluções encontradas sejam
muito interessantes, nos permitem afirmar que a música popular portuguesa é uma das que
melhor tem sabido resistir, na Europa, à influência dos massmédia com as suas
emissões maciças de música anglo-saxónica.
Panorama
Músico-Instrumental Português [xvi]
(transcrevemos na íntegra a
síntese de Ernesto Veiga de Oliveira, assinalada a itálico)
Nas terras
baixas do Noroeste, do rio Minho ao Tejo, populosas e progressivas, prevalecem geralmente
os cordofones populares ao serviço de uma canção de carácter profano e puramente
lúdico, de contornos melódicos simples, de um diatonismo elementar e de ritmos
coreográficos regulares e vivos, os cordofones populares - a viola, o cavaquinho, a
rabeca e certas espécies mais modernas: a guitarra (portuguesa), o violão, etc,. Nas
terras altas do planalto Ibérico, a Nordeste, de Trás-os-Montes às Beiras Interiores,
até ao Alentejo, no Sul, mais isoladas e preservadas, onde a canção é ainda
presentemente de tipo arcaico, de linhas severas, mostrando não raro remeniscências
modais e entonações micro-cromáticas, prevalecem os velhos instrumentos do ciclo
pastoril: em Trás-os-Montes, a gaita de foles (e numa área restrita, a Nordeste, o
tamboril e flauta tocados por uma só pessoa) e o pandeiro; nas Beiras, o adufe que serve
a música tanto das ocasiões lúdicas como das ocasiões cerimoniais, festas religiosas,
e a própria liturgia popular, dessas regiões.
Esta
distribuição poderia parecer que aponta uma coincidência entre o carácter da cultura e
da música, por um lado, e dos instrumentos, pelo outro, nas duas áreas. Contudo,
encontramos a gaita de foles com muita vitalidade em todo o Noroeste - aliás com um
repertório mal ajustado ao instrumento- a acompanhar as festas religiosas populares,
procissões, a visita pascal, etc, (da qual são nitidamente excluidos, pela força do
costume, precisamente os cordofones); e simetricamente, vemos a Leste a viola, embora
rara, que por seu turno acompanha um género lúdico local aparentado com a canção das
terras ocidentais.
Parece
pois que os cordofones populares em geral se podem considerar instrumentos específicos da
música profana e de expansão lúdica ou lírica, com exclusão de quaisquer usos
cerimoniais; ao passo que as outras categorias e designadamente a gaita de foles, o
conjunto do tamboril e flauta, o pandeiro quadrangular (e mesmo toda a série dos
idiofones menores e outros "barulhentos"), ao mesmo tempo que servem as músicas
das festas e danças profanas, são contudo também admitidas, sem objecção, em
funções mais austeras, como instrumentos cerimoniais e mesmo, em certos casos (muito
raros) sagrados.
Este
carácter dos cordofones, que detectamos nos casos actuais, parece também afirmar-se
historicamente: a viola foi o mais importante dos instrumentos trovadorescos, para as suas
canções líricas; ao longo dos séculos, ela vê-se através de textos e imagens
iconográficas, sempre em ocasiões estrictamente profanas, danças e diversões,
serenatas, cantares amorosos, para entretenimento de lazeres ou a enganar tristezas.
Na Ilha da
Madeira, têm grande relevo, como instrumentos para ocasiões lúdicas e de festa, três
cordofones da família das violas: a viola, o rajão e o braguinha. E como espécie
cerimonial distinguimos as grandes castanholas usadas na Ribeira Grande, na missa do
Parto, no Natal.
Também
relativamente aos Açores se podem estabelecer duas categorias fundamentais de
instrumentos musicais populares: instrumentos de expansão lúdica e instrumentos
ceriomoniais.
Entre os
primeiros distingue-se a viola "da terra" ou "de arame"- a mais
importante espécie do arquipélago- que se usa em todas as ocasiões festivas, sozinha ou
a acompanhar o canto das modas e descantes, nos balhos, nos serões e desfolhadas, nas
romarias, de caminho, em casamentos, a entreter lazeres e saudades, etc,. Os instrumentos
cerimoniais são fundamentalmente os que figuram nas Folias do Espírito Santo, que se
fazem ouvir sublinhando ou acompanhando os cantares próprios de certos passos dessas
complexas celebrações, aliás com cenários muito variáveis de Ilha para Ilha.
O
instrumental da Folia encontra-se em muitos sítios em vias de extinção e em seu lugar-
e aliás desde há largos decénios- com aceitação crescente, usam-se bandas ou
filarmónicas.
De referir
ainda que as violas e alguns cordofones usam-se também por toda a parte nos balhos que
têm lugar nas casas dos mordomos, nos cortejos dos bezeros e outras ocasiões de
carácter mais claramente festivas que, apesar disso, se integram no complexo cerimonial
das celebrações do Espírito Santo.
O panorama descrito por Ernesto Veiga de Oliveira
está em profunda mutação, como já referimos. Persistem no entanto ainda hoje, como nos
diz Michel Giacometti (1981)[xvii] , e no que respeita à música vocal, aspectos
significativos que de certo modo individualizam a música popular portuguesa no panorama
tradicional europeu, atendendo à sua natureza, modalidades, estruturas e funções.
A polifonia vocal tem em Portugal uma importância
raramente igualada em povos da Europa ocidental, sendo quase inexistente em Espanha[xviii] ; a música religiosa que ocupa um espaço
inegável na tradição portuguesa é a que mais se baseia em estilos e modos arcaicos; a
presença de um romanceiro muito rico, ligado à vida colectiva e doméstica das
populações rurais, nomeadamente nas áreas extremas do território, Trás-os-Montes,
Algarve e Ilhas, e aos ritos de trabalho (cantigas das segadas, das malhas, da apanha de
erva, da fiação e tecelagem do linho) e às datas consagradas do calendário cristão
(Janeiras, Reis, Quaresma) ou ainda em horas devocionais do dia e da noite.