Sons: Trângulo Mângulo |
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Gaiteiros de Lisboa
Ao Vivo em Sesimbra dia 24 de Abril de 2000Os
Gaiteiros de Lisboa vão apresentar-se ao vivo, em Sesimbra, num concerto único no dia 24
de Abril. Trata-se, sem dúvida, de um dos melhores grupos de Música de raiz tradicional
portuguesa - sendo responsável por uma (muito) saudável transformação da nossa
herança musical, quer através da capacidade de inventar instrumentos, quer da forma como
realiza os arranjos - deslumbrando com a sua abordagem musical profundamente atípica.
Depois de "Invasões Bárbaras" o regresso dos Gaiteiros de Lisboa em
"Bocas do Inferno" fez-se com a mesma originalidade, mas com um espírito mais
meticuloso. Aparentemente essa sensação deveu-se a uma mudança no processo de
composição das canções, onde no primeiro disco as musicas surgiram de um primeiro
improviso, o trabalho seguinte reflete uma maior maturidade em todo o processo criativo.
"Bocas do Inferno" não perde, no entanto, com esta alteração de hábitos,
mantém a mesma frescura, inclui igual diversidade de instrumentos estranhos e
desconhecidos (quase todos construídos pelos próprios Gaiteiros), e promove o mesmo
casamento feliz entre a musica tradicional e uma linguagem deste fim de século...
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| À Conversa com
os Gaiteiros de Lisboa
Editado por Luís Rei (Crónicas da Terra) em 1998Misto
de conversa, debate e entrevista com Carlos Guerreiro, José
Manuel David, José Salgueiro, Pedro Casaes e
Rui Vaz, orientada por Luís Rei (Crónicas da Terra), editada
em 1998.
Q: Pelo facto de haver este passado, uns do rock outros do jazz, os
Gaiteiros são, como são, um laboratório da música tradicional.
P.C. - Pois, nós temos todos muitas influências de vários sítios e depois tivemos
sempre uma raíz comum, mas acabámos todos, mais tarde ou mais cedo, por ir bater na
música tradicional.
Q: Mas, porquê a música tradicional? Por que não o jazz, por
exemplo?
P.C. - Pois se calhar o Salgueiro não passou tanto por aí. Apanhou o jazz primeiro e o
resto por acréscimo. Eu comecei a lidar mais com isso quando entrei para o Côro da
Juventude Musical Portuguesa. Começámos a ter mais acesso àquelas coisas do Graça, que
já tinha mais a ver com o tradicional. Depois chegámos a fazer umas coisas com o Zeca
Afonso, numa altura em que nunca se sabia se ia acabar bem ou mal. Foi-se criando um grupo
de gente que começou nessa altura. Depois no meu caso, do Carlos e do Rui veio o GAC por
acréscimo. Eu, entretanto, fui para a guerra em África e eles continuaram. Quando
regressei, retomámos, e a coisa processou-se assim. No caso do David, ele andou por
outros sítios
J.M.D - Mas, a raíz é mais ou menos a mesma. Também entrei para o Côro da Juventude,
também ouvi as coisas do Graça e do Giacometti. Andámos todos à volta da mesma
coisa
P.C. - E o Giacometti, encontrámo-lo na Beira uma vez.
R.V. - Penso que uma coisa que distingue um pouco os elementos deste grupo, de alguns
elementos de outros grupos de música tradicional, é que chegaram aqui depois de já
terem ouvido muitas outras coisas. De terem passado por outras experiências mesmo como
músicos. Para mim, a música tradicional foi o meu último estágio. O que quer dizer que
eu olho para a música tradicional e acho que isso tem muito a ver com a maneira como o
grupo todo está em relação a isto, em vez de ir procurar as suaves melodias ou os doces
acordes
J.M.D - Ou o solidó das Braguesas
R.V. -
e a batida do bombo mais fácil. Aquilo que me agrada é procurar certos
arcaísmos. Ouvi já inúmeros temas formais e faço muita escolha, digamos que é uma
escolha intelectual que tem a ver com o meu passado musical. Neste disco há um exemplo de
uma música que eu trouxe para o grupo, que é a "Folia do Espírito". Lá está
posso usar a palavra esquisita, mas não é bem esquisita, é uma música complexa,
provavelmente não sei se a saberemos cantar ao vivo. E é essa complexidade que há em
certos temas tradicionais. Isso tem um pouco a ver com a maneira de estarmos na música.
Os temas tradicionais que eu gosto de tocar são os mais difíceis. É isso que me agrada.
Como dirigi um grupo, o Cramol, em que a música tinha uma função muito diferente que
tem neste grupo, foi uma outra faceta de animador que é muito diferente, em que eu me
servi da música tradicional e da função que ela tinha originalmente para animar o
próprio grupo. Era um grupo de pessoas urbanas que passava o tempo a ver televisão e a
juntar-se à Segunda à tarde para cantar. Isto tinha um certo paralelismo com a própria
origem das músicas. E eu achei isso engraçado. Fazer reviver o hábito e a necessidade
de cantar. Costumo dizer que a música tradicional é a música de um tempo onde não
havia botões para carregar.
Q: Como os Bailia fazem reviver a necessidade de dançar
R.V. - Exacto. As pessoas quando precisavam, tinham que fazer isso porque não havia
ninguém que fizesse por elas, não é? É a necessidade de exibir uma forma de arte de si
próprio. E acho que isso também conduz à existência de coisas complexas, tanto na
cultura portuguesa como noutras culturas, e isso é que é interessante. Porque tem a ver
com a própria maneira de viver, com a função que a música tinha. Porque hoje em dia a
música tem uma função completamente diferente na vida das pessoas em relação a essa
altura. Isso aproxima-se um pouco da nossa condição de músicos. Um gaiteiro em
Trás-os-Montes é um indivíduo que não trabalha no campo, tem as suas terras, mas
outras pessoas trabalham as suas terras para ele poder tocar gaita. O facto de ele poder
tocar gaita é assumido por toda a gente. É, de uma certa forma, um cachet, uma forma de
vedetismo. Aliás, fala-se com um gaiteiro e vê-se que há ali uma certa vaidade, um
orgulho em ser músico. A música tinha também uma função nessas sociedades e acho
muito interessante estabelecer um paralelo entre essas duas coisas. Por exemplo, os
Gaiteiros competiam entre eles para exibir a sua destreza. Nas próprias danças dos
Pauliteiros, o gaiteiro entra exibindo-se. Há sempre uma piscadela de olho ao gaiteiro do
lado ou ao da aldeia vizinha para chamar a atenção e vincar que é melhor que o outro.
Q: Em relação à música, há uma procura constante de sons da
natureza para dar uma outra tonalidade à vossa. É o caso de "Por Riba se Ceifa o
Pão" em que vocês reproduzem vários elementos da natureza com espátulas, sacos de
plástico e escovas. Penso que há uma necessidade da vossa parte de fugir aos teclados
para criar esses ambientes. Creio que vocês só puseram um som de sino em
"Segadinhas", porque não deve ser lá muito confortável pegar numa torre de
Igreja e andarem com ela às costas.
J.M.D. e R.V. - Essa é a relação qualidade/preço (risos). É isso mesmo.
Q: Mas a vossa relação com a música centra-se na busca de
elementos naturais e ancestrais e a sua inserção no meio urbano. Daí essa incessante
necessidade de inovação. Estou certo?
J.M.D - Apesar da base ser a música tradicional e de existir uma preocupação em
recuperar temas esquecidos, nós nem sequer somos um grupo de música tradicional. Somos
um grupo que faz música e cuja base de trabalho é de facto a música tradicional.
Q: Vocês são como uma esponja que absorve todo o tipo de
influências.
J.M.D. - Isto é um laboratório.
Q: Vejo que vocês volta e meia colocam elementos do jazz ou de
música africana, por exemplo.
J.M.D. - E de rock também. A questão é a nossa sensibilidade. É aquilo que nós
achamos ou não, que em determinado momento cabe em determinada estrutura.
J.S. - Claro que por tratarmos temas tradicionais, não vamos ficar só naquela linguagem.
Antes pelo contrário, queremos tratar os temas tradicionais, mas com todas as
influências que todos nós temos. É preciso que agrade a todos nós, mesmo que isso seja
jazz, rock ou faça lembrar o hip hop. Há lenga lengas que podem, de alguma forma, fazer
lembrar rap. O problema é que estamos sempre a rotular as coisas.
J.M.D - Aliás, temos o "Ciao Xau Macau" que faz lembrar techno e não estamos
nada preocupados com isso (risos).
J.S. - Agora vamos ter que encontrar maneira de tocar isso ao vivo.
J.M.D. - Já houve quem sugerisse que samplásemos umas coisas e depois é só carregar no
botão" (risos).
J.S. - Mas aí (e respondendo à pergunta atrás) não estamos a cingir-nos à
utilização de instrumentos acústicos e tradicionais. Não digo para utilizarmos
sintetizadores, mas, por exemplo, colocar algumas gravações que nos ajudem a criar
ambiente. Tudo o que procuramos é o ambiente, que queremos que seja o mais próximo do
que sentimos.
Q: Daí a vossa necessidade de construir instrumentos, como a
ocarina gigante ou os túbaros de orpheus, que têm servido de tapetes ambientais.
J.S. - Há os dois lados. Repara que já havia instrumentos construídos pelo Carlos antes
do grupo estar feito. Fomos experimentando esses novos instrumentos naquilo em que
estávamos a trabalhar no momento e funcionou. Isso foi também, de certo modo, delineando
a orientação do próprio grupo. O facto de nos podermos surpreender a nós próprios é
incrível. Acho que todos os dias vivemos um bocadinho melhor. Todos os dias criarmos
qualquer coisa a partir de um tubo ou algo do género. "- E por que não integrar
esse som?". E encontramos mesmo a melhor maneira de o integrar.
R.V. - Já vi certos músicos de música tradicional inventarem coisas e depois
castrarem-se a eles próprios. Porque depois funcionava o cérebro, que dizia: "-
Não! Isto não está bem dentro da tradição.". Tive discussões enormes por causa
disso, bastante antes dos Gaiteiros.
J.S. - A nossa música tradicional nunca evoluiu. Sempre foi tratada dessa forma, como ele
agora descreveu. Vês o caso do flamengo aqui em Espanha, que é uma música de dança
oriunda das gentes nómadas. O que é certo é que eles foram evoluindo. Os
instrumentistas cada vez mais se agarravam aos instrumentos e foram ganhando outra
linguagem.
Q: Penso que a música de tradição europeia, na maior parte dos
países, está a evoluir. Há sangue novo, e novas ideias, em quase todo o lado.
J.M.D. - Em Portugal aconteceu uma coisa muito má que foi a estandardização da música.
P.C. - O Carlos disse muitas vezes que não faz sentido os músicos da cidade quererem
fazer as coisas, como os indivíduos que viviam no campo.
J.S. - Em Espanha, vais à Andaluzia e encontras grandes virtuosos da Guitarra, vais à
galiza e encontras grandes virtuosos da Gaita. Há que fazer evoluir a linguagem.
Q: Se olharmos para a música tradicional actual verificamos que
existem, cada vez mais, troca de experiências entre músicos de todas as partes do mundo.
C.G. - Eu desconfio um bocado disso. Cada um de nós tem a nossa matriz cultural e no dia
em que é possível que uma pessoa do Alasca se encontre com uma do Senegal, desconfio.
Q: Os festivais europeus permitem que isso aconteça
C.G. - Há meios exteriores que permitem que um gajo do Senegal se encontre com um gajo do
Alasca. Eu acho isso no mínimo interessante. Primeiro há a miscigenação. O que é que
é isso? É aquilo que o português criou em África e no Brasil. É a miscigenação mais
primária, em que o branco que só é capaz de mexer o pescoço, aprende a mexer as ancas
com o preto. Isso aí é do caraças. Porque se passou numa altura em que o telefone
funcionava a 50 km/h e a rádio a 30 km/dia, numa fase em que toda a cultura circulava de
forma mais lenta. Agora pegas na Internet e em meio segundo estás no Alasca. Aí acho que
toda a possibilidade de comunicação começa a funcionar contra a cultura, porque a
cultura precisa de assimilação, conhecimento, convívio e vivência. Quando recusas tudo
isso fica-se na superficialidade.
Q: Mas, cada vez mais, aparecem grupos em que essa reunião de
diferentes músicos se faz e, por vezes, os resultados são surpreendentes. Grupos em que
o diálogo que se estabelece é fluente.
C. G. - Concordo que se trouxeres aqui dois gajos do Alasca, mais dois de Tuva, mais dois
do Sri Lanka, nós, músicos urbanos, habituados a tocar e a conviver com milhares de
géneros de música, acabamos por curtir uma qualquer. Se der dá, se não der não dá.
Temos bagagem para aguentar tudo isso. Mas, o que é que isso representa em termos
culturais reais?
Q: Mas, os Gaiteiros são também um grupo que vai absorvendo
influências com as experiências interculturais que vai tendo. Tocaram com um grupo
corso
C.G. - Dois anos.
Q: Foste a Macau e isso, de certo modo, vê-se no vosso disco
C. G. - Fomos lá duas vezes.
Q: Vocês têm mais que tarimba suficiente para percorrer o circuito
de festivais folk europeus. Se calhar, se convivessem com uma brass-band romena, que
utiliza maioritariamente instrumentos de sopro, a certa altura estariam também a tocar
alguma hora (dança romena).
C.G. - Talvez sim, mas agora a partir do momento em que se proporciona esse tipo de
contacto não está, imediatamente, tido como ponto assente que nos vamos entender com
eles. Isso aconteceu em directo na rodagem do filme sobre Giacometti. Nós, músicos de
Lisboa, alguns de nós com um profundo conhecimento da cultura do Alentejo,
encontrámo-nos com um grupo alentejano. Em directo, tentaram filmar-nos com eles numa jam
session. Falhou e nós sabemos porquê. Quando resultou, não estavam a filmar. Nos
momentos livres, que têm a ver com o povinho, com os copos, com o olhar-se nos olhos, com
o "tocar-se nos cornos", a câmara não estava lá. Antes de sermos chineses,
franceses ou alentejanos nós somos pessoas e temos um código de entendimento. Se eu não
gramar aquele gajo, mesmo que ele seja da minha rua, nunca conseguirei cantar com ele. E,
no entanto, posso ser português e aquele gajo ser do Sri Lanka, posso ter um instrumento
e ele outro. Olhamo-nos nos olhos, sentimos que há uma comunicação e tocamos. É mais
que uma questão intercultural, como a que se tem feito crer através dos media (as
campanhas interculturais mediáticas a mim metem-me nojo). Desconfio sempre dessas
campanhas que vêm pela televisão. No entanto, nós temos as melhores experiências que
possas imaginar. Agora não tem é nada a ver com aquilo que nos querem vender, ou seja,
que é giro um preto tocar com um branco ou um amarelo tocar com um vermelho. Não tem
nada a ver com isso, tem que ver com o facto de sermos todos pessoas. É aqui que se
aplica o todos diferentes todos iguais. Queremos é entendermo-nos com as pessoas. Não é
a música que é uma linguagem universal, é a linguagem humana que é universal. Então
se eu te consigo olhar nos olhos e te consigo entender, se tu tocares uma música, melhor
ainda. Mas, aí há um entendimento anterior. Eu já tive experiências em que vinha um
músico com a sua flauta, e eu com a minha e não deu nada.
Q: Tiveste alguma vez alguma experiência com músicos de outros
países em que não falavam uma língua comum, mas que se entendiam através do olhar?
C. G. - Tivemos com os corsos.
Q: Mas eles falavam francês e creio que vocês também.
J.S. - Eles falavam francês, não por vontade deles, obviamente, mas há qualquer coisa
que une aquele povo ao nosso. Tem a ver com a vivência, com a temperatura, o sítio onde
se está no planeta (acima ou abaixo do equador). Então encontramo-nos, como irmãos
separados por milhares de quilómetros de distância. Neste disco acontece uma coisa muito
engraçada. O Carlos foi buscar o tema "Leva Leva", que tem várias influências
da música portuguesa. E, de repente, descobrimos que há uma melodia que ele encontra
para essa música, que também existe na Córsega. Diferente, obviamente, mas muito
parecida. Então pedimos a um cantor corso para ele cantar. Isso tem a ver com o tempo.
C. G. - Não é tanto a nossa capacidade agressiva. Normalmente quando se fala em
marketing, e que é preciso impormos o nosso produto lá fora, soa-me a saloio. Pela mesma
razão que acho que o Guterres é um saloio. (em voz alta) O GUTERRES É UM SALOIO. Acho
que todo o aparelho de Estado, o aparelho cultural montado no nosso país é saloio.
Quando nos entendemos com alguém culturalmente, é porque nos sentimos bem. Não é por
pensarmos que isso vai vender. Acabámos por fazer uma fusão com os corsos no nosso
disco, sabemos que isso não vai vender, mas estamos bem com a nossa consciência e é
isso que é o mais importante.
Q: (Para o Rui Vaz) Querias falar há pouco sobre experiência com
diferentes músicos.
R.V. - Nesse aspecto tenho uma experiência engraçada porque com o mesmo músico, tenho
uma completamente falhada e outra completamente conseguida. Foi com um músico africano,
nos primórdios d'O Ó Que Som Tem. O Salgueiro era uma criança nessa altura. Lembro-me
que fizémos um concerto horrível. Julgámos estar a reproduzir ritmos daquela região e
ele estava completamente à toa. Foi uma desligação completa. Depois tive uma outra
experiência fazendo música religiosa com o Cramol, em que, por razões que não
conheço, fizémos coisas em três vozes com notas proibidas pela cultura dele. Eram notas
que nós fazíamos simplesmente, mas ele dizia que não e a gente cortava-as. Mas, a certa
altura as pessoas do Cramol, que lidavam com a música uma hora por semana, começaram a
improvisar. Por acaso é engraçado que só depois de terem aprendido as canções, é que
as pessoas se deram conta de que eram canções religiosas, porque aquilo era extremamente
divertido de fazer.
Q: Uma das coisas que vejo também é uma certa dificuldade em
termos de mobilidade dos intrumentos. Para um tema têm este intrumento, para aquele têm
outro(s).
P.C. - Isso é o menos. O trabalho de ensaios é que vai ser mais complicado, porque o
disco é, de facto, mais complexo.
J.S. - Este disco foi feito de outra forma também. No primeiro disco todos nós
ensaiámos conjuntamente e depois fomos para estúdio ou para um espaço e gravámos esse
disco. Neste, a concepção foi feita sobretudo pelo Carlos e pelo David, porque eram as
pessoas mais disponíveis na altura. Já reparaste que há pessoas a fazer muitas outras
coisas que não música, não é? Chegámos a um ponto em que eles assumiram a produção
do disco e foram inventando coisas. Quando chegámos ao estúdio, fomos, por indicação
deles, fazer coisas em que eles já tinham pensado. Por isso, fizémos um tipo de trabalho
que ainda não sabemos executar ao vivo. Precisamos de mais tempo para o trabalhar.
Q: Dessa concepção do David e do Carlos para o trabalho de
estúdio deve ter havido substanciais alterações. Pois, aquilo que vejo em ti, é que
parece que tens "bicho carpinteiro" nas mãos, tens uma necessidade contante de
criar ritmos e de improvisar, nem que seja a bater na mala dos instrumentos. Vejo também
que não há dois concertos iguais de Gaiteiros.
J.S. - Pela minha formação, de músico de jazz, embora tenha tido contactos com a
música tradicional através dos Trovante ou com o rock através do Rui Veloso, ou dos
Resistência, há sempre inventividade agregada. Há sempre uma grande liberdade, na forma
combinada para que se possa recriar todos os dias de maneira diferente. É, por isso, que
quando estou a tocar com eles, há várias maneiras de sentir e dizer as coisas.
R.V. - Eu tenho uma formação um pouco diferente da do Zé, venho da música tradicional,
mas o que nos liga é o mesmo. Tal como o Zé nunca toca um tema de jazz da mesma maneira,
eu nunca faço um alto de música alentejana da mesma maneira. E nisso estou um bocado
limitado no grupo. Nunca consigo improvisar aquilo que desejaria, pois a certa altura
faria descarrilar o resto da malta. Estou muito mais à vontade neste campo com
indivíduos que conhecem o cante alentejano, e onde é possível uma certa dose de
improviso. Por vezes, quando ouvia falar de música improvisada, perguntava-me: - Mas
estão a falar de quê? De canto alentejano? De música da renascença? Hoje em dia
associa-se muito o improviso ao jazz, mas acaba por se aplicar a todas as vertentes. Para
saber improvisar há sempre um grau de conhecimento que é necessário. Reparei nisso
quando estudei música alentejana. É o saber aprender a cantar.
Q: É também o sentir
R.V. - É um sentir, mas há uma técnica, há coisas que é preciso aprender, pois ora
ficam bem ou mal. Aí cheguei à música tradicional quando já vinha do jazz. Sabia o que
era improviso e achei muita piada. Achei que os alentejanos, os tais das anedotas, afinal
fazem música do caraças. Até fazem jazz e tudo. Então dediquei-me muito, numa altura
da minha vida, a esse estudo. É uma coisa que os corsos também fazem. Improvisam muito
em harmonia.
Q: Neste álbum as melodias estão mais adornadas, deixam de ter uma
sonoridade tão rústica e tão bárbara.
R.V. - Há qualidades no tal laboratório e no improviso. Nunca conseguiríamos improvisar
colectivamente o "Milho Grosso", que tem um arranjo complexo e é difícil de
executar. Há peso e qualidade nas coisas improvisadas, mas há que haver também
equilíbrio entre essas coisas e as pensadas, porque nem tudo se pode improvisar. Às
vezes, quando se pensa bastante num arranjo, surgem coisas muito engraçadas, como foi o
caso. E este disco foi mais um ensaio, o outro foi muito mais improvisado. Não posso
definir no outro disco um arranjo de uma só pessoa. Aqui as propostas de arranjo eram
muito mais concretas que no outro disco. É isto.
Luís Rei
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